No extremo sul de SP, bairro vive mundo paralelo com seis internações
Resumo da notícia
- No extremo sul de São Paulo, Marsilac tem apenas 9 vítimas da covid-19
- População menor e "isolamento natural" explicam em parte os números baixos
- Mesmo com relativo alto número de UBS por habitante, bairro amarga os piores índices de mortalidade infantil e gravidez precoce
Debruçada em sua varanda pintada de azul claro, Mari Rose Silva Santos se esquiva das propostas de retrato. "Outro dia me pegaram descabelada, apareci na televisão toda desleixada", conta, sorrindo. Procurando emprego desde antes da pandemia, ela pragueja contra as autoridades enquanto observa o movimento na Estrada Engenheiro Marsilac, principal rua do bairro homônimo, no extremo sul de São Paulo. "Agora que o comércio abriu de novo, aumentou o risco para nós aqui."
Marsilac, a 50 quilômetros do centro, vive uma espécie de realidade paralela dentro da capital. O distrito onde se "consegue ouvir o barulho do mar" —mantra jocoso repetido por muitos paulistanos, em alusão à proximidade do bairro com o litoral— tem 174 casos, entre confirmados e suspeitos de contaminação pelo novo coronavírus, segundo dados compilados pela prefeitura até o dia 9 de junho.
Entre janeiro e junho, seis pessoas de Marsilac foram hospitalizadas por SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave). Bairros próximos, como o Jardim Ângela e o Jardim São Luís registraram, respectivamente, 919 e 795 internações neste mesmo período.
Um mapa elaborado pela Prefeitura e divulgado no último domingo (21) aponta para nove mortes causadas pela covid-19 no bairro, número inexpressivo perto dos vizinhos. Parelheiros já registra 113 vítimas, e o Grajaú, com 267, se estabeleceu como um dos bairros com mais mortes pela covid-19 na capital paulista. Três dos cinco bairros onde mais se morre pelo coronavírus em São Paulo estão na zona sul.
Em Marsilac, quem quer se informar sobre a pandemia e não tem internet em casa precisa subir uma pequena ladeira até o campo de futebol local para poder acessar o 4G, ou se equilibrar em uma das árvores da praça central. Não há sinal de celular, e no gramado apenas as operadoras Oi e Vivo funcionam de forma precária.
Entre os fatores que explicam as diferenças na contaminação dos bairros vizinhos está o tamanho da população. Enquanto Marsilac tem cerca de 8 mil habitantes, Grajaú acumula mais de 360 mil moradores. Já Parelheiros tem cerca de 131 mil moradores, conforme dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010.
"Temos uma taxa de infecção muito baixa, menos de 1%", diz a enfermeira Daiana Braia, gerente da UBS Marsilac. "O isolamento também ajudou, aqui as pessoas são mais reservadas, já se isolam naturalmente. É um costume geral da população ficar mais em casa."
Quando a pandemia chegou, não tivemos grandes problemas em conscientizar as pessoas de que elas precisam ficar em casa. Mesmo assim, para não ficar esse clima de 'aqui não chega', nós alertamos todo mundo sobre o isolamento
Daiana Braia, gerente da UBS Marsilac
É meio-dia, e o sol castiga a varanda de Mari Rose. Sua mãe se esgueira em uma sombra formada na calçada da frente, acomodada em uma cadeira dobrável. O inverno é mera alegoria.
"As pessoas aqui não estão muito preocupadas com máscaras, não acham que vai acontecer com elas. Tem gente que fala que já pegou e não pega mais", diz Mari Rose, apontando para três jovens que caminham na rua sem a proteção no rosto. Ali, de fato, é mais difícil encontrar adolescentes e adultos jovens de máscara, mas os idosos não se furtam de usá-la.
Aqui todo mundo sabe da vida de todo mundo. As pessoas saem para trabalhar, vão ao centro, e voltam com esse vírus. Acabam pegando longe daqui a trazendo para o bairro
Mari Rose Silva Santos, moradora de Marsilac
A diferença na relação com a pandemia pode ser notada caminhando poucos metros pelo bairro. Enquanto três mulheres idosas conversam devidamente equipadas em frente a uma loja com portão baixado, a estudante Ingrid Almeida, 19, mexe no celular, encostada em um carro. Sem máscara, ela diz ao repórter, antes mesmo de ser questionada: "Aqui ninguém está com medo, não, está tudo normal".
Nascida e criada em Marsilac, ela gastava mais de três horas diárias para ir e voltar da universidade em que cursa biologia. Agora, com a pandemia, ela se frustra com as aulas online. "É horrível, presencialmente a gente aprende muito mais, dá para focar e se concentrar."
"Quem não se protege é quem não tem medo. Eu tô morrendo de medo", diz Jaime da Cunha, 61, funileiro e pastor da Assembleia de Deus. "O pessoal, em sua maioria, está sem máscara", diz ele, abafado pelo barulho do trem que passa a poucos metros dali. "Eu nem saio para a rua, no máximo vou ao mercado." Ele abriu uma exceção para ajudar um "irmão" da igreja —que trabalha como barbeiro em Marsilac— a consertar seu Fusca vermelho escuro.
Situado em uma área de proteção ambiental, Marsilac abriga a estação ferroviária Evangelista de Souza, que homenageia o banqueiro Barão de Mauá. Em 1997, a última linha de passageiros que funcionara ali, a Embu-Guaçu-Santos, deixou de operar. Há cerca de 10 anos a estação foi completamente abandonada, e jaz ali um resquício da história paulista.
Desconfiança com os números
O pequeno número de mortes no bairro, associado a um dos distritos de São Paulo com maior área, nutre a desconfiança de parte dos moradores e lendas urbanas sobre o coronavírus. Alguns dizem não acreditar nas nove mortes contabilizadas pela prefeitura. Na UBS Marsilac, uma das três da região, um placar aponta para 17 casos confirmados e 0 óbitos.
Um comerciante que se identifica como Rodrigues, dedicado a fornecer ovos caipiras para os que vivem no bairro, é um dos que não acreditam nos números. Ele, no entanto, cita uma espécie de lenda urbana que circula no Marsilac, e toma a narrativa como verdadeira. Na frente de sua pequena mercearia repousa um carro, abandonado no local há cerca de duas semanas e parcialmente destruído.
O carro teria pertencido a um cacique de uma tribo indígena que, após viajar à baixada santista, contraiu o coronavírus e morreu. O veículo teria enguiçado no bairro por conta de problemas mecânicos, e o líder indígena largara o carro ali mesmo.
A despeito de "não acreditar muito nesses números" da prefeitura, Rodrigues fiscaliza as máscaras de todos que passam por sua mercearia. "Outro dia fui no pronto-socorro, briguei com uma moça que estava sem máscara. Ela falou que estava almoçando, ainda sobrou para mim", conta Rodrigues, morador do bairro há 23 anos. Sob o clima interiorano, ele anota em um caderno surrado as duas dúzias que acabara de vender para "não esquecer de cobrar depois".
Paradoxos na saúde
Ao mesmo tempo em que ostenta o maior número proporcional de UBS por habitante (são 3,58 para cada 10 mil pessoas), Marsilac tem os piores índices da cidade de São Paulo em mortalidade infantil, gravidez na adolescência e idade média ao morrer, segundo pesquisa da Rede Nossa SP de 2019.
Um bebê que nasce em Marsilac tem 23 vezes mais chance de não chegar a um ano de vida do que um bebê que nasce em Perdizes, bairro nobre da zona oeste.
"Ter o equipamento não significa que a saúde está em boas condições, depende muito do que se investe na equipe. Não adianta você ter uma equipe com metade de seu funcionamento, por exemplo. Equipes médicas têm sido deslocadas para outras regiões em razão do coronavírus, e a UBS tem exercido papel crucial nessa pandemia", argumenta a médica Carolina Castiñeira, diretora do Simesp (Sindicato dos Médicos de São Paulo)
Em 2016, o bairro amargou o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da cidade. Um ano depois, a Rede Nossa SP mostrou que o distrito tem o menor salário médio em emprego formal: R$ 1.287,32. No bairro, também não há nenhum museu, cinema, teatro ou qualquer equipamento público de cultura.
Apesar das unidades básicas de saúde, os moradores têm de percorrer alguns quilômetros para fazer um tratamento mais robusto, ou ser internado. Os hospitais de Parelheiros e do Grajaú costumam ser os mais procurados. Com a pandemia do novo coronavírus, não foi diferente.
Em relatos à reportagem, os moradores dizem que procuram o Hospital Geral do Grajaú (24 km de distância), o Hospital de Parelheiros (9 km de distância) ou o AME (Ambulatório Médico) de Interlagos (25 km de distância) para realizar procedimentos mais complexos, como exames ou consultas específicas.
"Nossa referência, caso o paciente precise de um tratamento específico, é a AMA Parelheiros [13 km de distância da UBS Marsilac]. Depois eles retornam e passam com o médico daqui", explica a enfermeira Daiana Braia.
Para Castiñeira, Marsilac se insere em um contexto de descaso da prefeitura em relação à saúde pública na periferia da zona sul. "Já foi elaborado um documento, encaminhado às entidades responsáveis, solicitando uma maior presença da secretaria de Saúde ali [região sul, incluindo Marsilac], seja com equipamento ou com equipes."
Os moradores acabam ficando à mercê do sentimento de heroísmo das equipes
Carolina Castiñeira, médica e diretora do Simesp
Em nota, a Prefeitura de São Paulo afirmou que retomou as obras da UPA (Unidade de Pronto Atendimento) de Parelheiros no final de maio, "agregando aos serviços da rede de atenção básica e hospitalar na região, sendo referência para a UBS Marsilac".
"A UPA será equipada com leitos de urgências, sala de ortopedia, raio-x, sala de gesso, suturas, esterilização e expurgo, triagem, consultórios médicos, consultório odontológico, sala de medicação, poltronas de inalação adulto e infantis, coleta de exames, sala de eletrocardiograma, salas de avaliação, leitos de observação adulto e infantil e salas de isolamento", diz o texto da prefeitura.
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