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Homem é preso por vandalizar estátua de mãe de santo: 'A mando de Deus'

Busto de Mãe Gilda é alvo de vandalismo em Salvador (BA): "Num momento de pandemia, num momento em que o país passa por tanta dificuldade, mais uma vez o busto de Mãe Gilda é depredado" - Arquivo Pessoal
Busto de Mãe Gilda é alvo de vandalismo em Salvador (BA): 'Num momento de pandemia, num momento em que o país passa por tanta dificuldade, mais uma vez o busto de Mãe Gilda é depredado' Imagem: Arquivo Pessoal

Alexandre Santos

Colaboração para o UOL, em Salvador

16/07/2020 16h21

Um busto em homenagem à ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda (1935-2001), foi apedrejado na manhã de ontem, em Salvador, por um homem que teria alegado ter atendido a um "mandado de Deus". O suspeito, que não teve a identidade divulgada, foi detido por policiais militares pouco tempo depois de atacar o monumento, que fica no Parque do Abaeté, no bairro de Itapuã.

Mãe Gilda é fundadora do Ilê Axé Abassá de Ogum, um dos mais importantes terreiros de candomblé da Bahia.

Desde que foi inaugurado, em novembro de 2014, o busto da líder religiosa já sofreu ao menos dois ataques semelhantes. O mais recente foi em maio de 2016, quando precisou passar por uma restauração completa.

Segundo a ialorixá Jaciara Ribeiro dos Santos, sucessora e filha biológica de Mãe Gilda, ela foi avisada sobre o nova depredação por meio de um telefonema.

Em um vídeo publicado nas redes sociais, Jaciara aparece diante da peça violada e lamenta o que vê como mais uma agressão motivada por intolerância religiosa ao povo de santo.

"Eu recebi uma ligação da gestora dizendo que um homem veio aqui, apedrejou e quebrou tudo. É a segunda vez que o busto de Mãe Gilda é violado. A polícia foi acionada, ele [o homem] está algemado. Liguei para minha filha, meu advogado, porque a gente não pode silenciar. Num momento de pandemia, num momento em que o país passa por tanta dificuldade, mais uma vez o busto de Mãe Gilda é depredado. Quebrou tudo aqui, deu pedrada. Ele disse que foi a 'mando de Deus'. Que Deus é esse?", questionou Jaciara.

"Estou aqui convocando o povo de candomblé, porque a gente precisa ter esse exemplo. Eu não quero ser a garota-propaganda da intolerância. Mas são 21 anos da morte de mãe Gilda, e ainda assim esse ódio religioso não acaba", desabafou.

Em nota encaminhada ao UOL, a Polícia Civil disse que a Central de Flagrantes, onde o caso foi registrado, lavrou um TCO (Termo Circunstanciado de Ocorrência) sobre dano ao patrimônio público"cometido por um homem conduzido por policiais militares após depredar o monumento".

"Com sinais de distúrbios mentais, o homem, que é morador de rua, não deixou claro o motivo do ato. O caso continuará sendo apurado pela 12ª Delegacia Territorial (DT), de Itapuã", diz o comunicado.

Ao UOL, a advogada Gabriela Ramos, que representa o Ilê Abassá de Ogum, afirmou não concordar com a tipificação descrita no boletim de ocorrência."Não é só uma questão de dano ao patrimônio. É uma questão que envolve intolerância religiosa e diz respeito, no mínimo, à violação de objetos religiosos, conforme o artigo 208 do Código Penal", declarou.

A advogada diz que foi tratada com desdém ao questionar a delegada, que teria dito que usaria "linguagem simples" para lhe explicar o TCO. "Eu falei 'não preciso que a senhora traduza. Eu entendo linguagem técnico jurídica porque eu sou advogada, e ela sabia que eu era advogada, porque eu já tinha me apresentado. Você procura o poder público e vê a manifestação nua e crua do racismo institucional", queixou-se Gabriela.

Ela também disse que uma escrivã teria negado o B.O.

Questionada sobre os relatos da advogada, a assessoria da Polícia Civil disse que ela deve procurar a Corregedoria ou a Ouvidoria da instituição.

De acordo com Fabya Reis, secretária estadual de Promoção da Igualdade Racial da Bahia, a pasta colherá informações para um relatório que será encaminhado à 12ª DT e à Rede Estadual de Combate ao Racismo e intolerância Religiosa, da qual fazem parte o Ministério Público e a Defensoria Pública. O objetivo é materializar um processo judicial.

Somente neste ano, a secretaria já registrou 210 casos de intolerância religiosa, dos quais sete foram depredações a monumentos públicos.

Morte após ataque em jornal da Universal

Mãe Gilda morreu em 21 de janeiro de 2000, vítima de um infarto fulminante. À época, a morte da ialorixá foi atribuída a um ataque feito naquele ano pelo jornal Folha Universal, da Iurd (Igreja Universal do Reino de Deus). Na capa, a manchete do periódico mostrava uma foto de Mãe Gilda acompanhada dos dizeres "macumbeira charlatã".

Segundo familiares, Mãe Gilda ficou abalada desde então.

Em 2009, a Iurd foi condenada a pagar uma indenização de R$ 260 mil aos filhos e marido da líder religiosa. A medida foi imposta pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) em uma decisão contra a qual não cabiam mais recursos.

Em 2007, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei que criou o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, comemorado em 21 de janeiro. A data coincide com o dia da morte de Mãe Gilda.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado no 19º parágrafo desta matéria, a lei foi sancionada em 2007, e não em 2017. A informação já foi corrigida.