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Em nenhum momento me senti intimidado, diz guarda xingado por desembargador

Do UOL, em São Paulo

20/07/2020 14h11

O guarda civil municipal que foi xingado por um desembargador em Santos (litoral de São Paulo) ao pedir que ele usasse máscara de proteção contra o novo coronavírus diz que a atitude do magistrado não o impediu de cumprir seu trabalho. "Em nenhum momento me senti intimidado por ele, em nenhum momento hesitei em fazer meu papel", afirmou Cícero Hilário em entrevista à CNN Brasil.

Ontem, o desembargador Eduardo Almeida Rocha Prado de Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, chamou Hilário de "analfabeto" e ainda rasgou e jogou no chão o papel com a notificação de que estava sendo multado. Por esse motivo, levou uma segunda multa, de acordo com Roberto Guilhermino, o guarda civil que participava da abordagem e gravou um vídeo da "carteirada".

O uso do equipamento de proteção contra a covid-19 é obrigatório na cidade desde 23 de abril de 2020, assinado pelo prefeito Paulo Alexandre Barbosa (PSDB). Descumprir a medida gera multa de R$ 100.

"Não é lei", disse infrator

As imagens mostram Siqueira sendo abordado pelo guarda Hilário, que pede "por favor" para ele usar a máscara. O desembargador é informado sobre o decreto, mas diz que o ato "não é lei" e se recusa a fazer o que o guarda pede.

Indignado por receber uma multa, já que se negou a seguir a orientação, Siqueira pega o celular e diz que está ligando para o secretário de Segurança de Santos, Sérgio Del Bel. Ao perceber que está sendo gravado pelo outro guarda, ele sorri e faz um sinal positivo.

Durante o telefonema, Siqueira afirma que está "com um analfabeto" e alega que está sozinho na faixa de areia. O homem tenta passar o telefone ao guarda, que se recusa.

Após ser multado, o desembargador amassa o papel e o joga no chão.

Cícero Hilário diz que já tinha passado por algumas situações como essa. "Se houver recusa, a gente faz o auto de multa. A gente se depara com várias pessoas não usando ou usando a máscara de forma errada."

Sobre os casos de "carteirada", quando a pessoa abordada usa a profissão ou o cargo para se livrar da punição, ou as ocorrências de "Você sabe com quem está falando?", os guardas civis dizem que são treinados a prosseguir com o registro da ocorrência, sem discriminar a pessoa ou privilegiá-la, por qualquer motivo que seja.

"A gente está ali para fazer prevalecer o decreto, não importa o trabalho da pessoa ou quem ela conheça", afirma Hilário. "A grande maioria utiliza máscara. Infelizmente, existe uma minoria que não utiliza ou faz de forma errada."

O guarda que gravou tudo, Roberto Guilhermino, diz que o desembargador quis, sim, usar do cargo para escapar do que deve ser cumprido por todos: "Lógico que ele teve o intuito de mostrar que é 'superior'."

Guilhermino afirma que, enquanto gravava tudo, manteve a calma pois teve "total confiança no comportamento do Cícero na abordagem, que ele saberia conduzir a ocorrência da melhor forma possível".

"Estamos longe de sermos analfabetos"

Durante a entrevista, Guilhermino pediu para que fosse reforçado que a Guarda Civil de Santos exige que seus integrantes sejam aprovados em concurso. "O meu colega é pós-graduado em Gestão de Segurança Pública. Não se trata de algum desqualificado", ele afirmou.

Guilhermino também tem pós-graduação: "Estamos longe de sermos analfabetos."

"É um cidadão (o desembargador) que não conhece nossa vida. Não sabe o quanto é difícil para gente se dedicar, ser pai, correr atrás dos nossos sonhos e conquistas, nossos objetivos", ele concluiu.

À Globonews, Cícero Hilário afirmou que a família se surpreendeu ao ver o vídeo pela primeira vez. No entanto, ele diz que a filha de 15 anos ficou feliz ao saber que o pai agiu corretamente.

"Ao chegar em casa, ao ver que minha esposa e minha filha de 15 anos haviam visto o vídeo... Minha filha não entendeu o porquê de eu ter sido tratado daquela forma. Ela até me indagou se eu tinha feito algo. Eu não sabia o que explicar para ela. Estava fazendo meu trabalho. Minha esposa conversou com ela, com nosso filho menor. Depois, com a repercussão, com as mensagens, eles viram, ela percebeu que eu estava fazendo meu trabalho, agindo da forma correta. Hoje ela esta feliz com o que aconteceu."

Reincidência

Segundo Roberto Guilhermino, a abordagem foi a terceira contra o desembargador —uma delas não foi filmada. Em todas, segundo ele, a reação foi semelhante.

"Eu já havia o abordado. Na ocasião, foi uma ocorrência na qual não tem gravação. Eu já o conhecia, já tinha visualizado esse cidadão, que foi abordado pelo mesmo comportamento. Ele se nega a utilizar máscara. Na ocasião da outra gravação, era fase de adequação, onde cabia só orientação. Desta vez, é a primeira vez que a nossa guarnição faz a multa com relação ao descumprimento desse decreto municipal", afirmou o guarda de Santos.

"Tem essa terceira abordagem. Não sei se já ocorreu com outras guarnições. Dessa outra vez, que eu presenciei, o supervisor que estava na viatura foi quem fez a verbalização. Foi tratado da mesma forma, com hostilidade, dizendo que o decreto não é lei. E também fez menção de fazer ligações e deixou claro o cargo que exerce", completou.

Roberto admitiu a possibilidade de recorrer à Justiça contra o desembargador após os registros.

"Penso, sim, em fazer tudo que for pertinente, cabível, para que isso não passe impune. Lição para todos. Não é o cargo, a função, a classe social, a cor. O que vale é o exemplo. Graças a Deus, nossa corporação é uma repercussão positiva pela atuação que tivemos nessa abordagem", acrescentou.