Surto em frigorífico pode ter infectado mãe que morreu sem ver filha
A dona de casa Patrícia Beatriz Albuquerque Correia, 38, que morreu sem conhecer a filha, Ana Beatriz, que nasceu prematura após cesárea de urgência, no hospital no município de Colíder (MT), pode ter sido infectada pelo novo coronavírus por causa de um surto da doença que houve em um frigorífico da JBS, no qual o seu marido trabalha.
Valtair Porto foi diagnosticado com covid-19 e teve sintomas leves. A suspeita da família de Patrícia é que ele tenha sido infectado no frigorífico, que teve 84 trabalhadores testados positivos, de acordo com o MPT-MT (Ministério Público do Trabalho do Mato Grosso). Valtair trabalha na unidade de Colíder. A JBS informou através de nota que está apoiando a família do funcionário, mas não pronunciou sobre o surto na unidade em MT.
Patrícia e Valtair sonhavam em ter uma filha, pois já eram pais de três rapazes. Mas, a doença impediu Patrícia de conhecer a filha. Mãe e filha foram separadas durante o parto e transferidas em UTIs (Unidade de Terapia Intensiva) aéreas para hospitais em Goiânia e Cuiabá, respectivamente, devido ao grave estado de saúde em que se encontravam. Patrícia morreu sábado (25) no hospital Ruy Azevedo, em Goiânia. O enterro dela ocorreu nessa segunda-feira (27), em Pontes e Lacerda (MT).
De acordo com a família de Patrícia, Valtair foi o primeiro a ser infectado. Em seguida, o filho mais novo do casal e Patrícia adoeceram com covid-19. Em 23 de junho, Patrícia piorou com os sintomas da doença, sentiu muita falta e ar e foi levada para o hospital de Colíder, onde foi constatado que 95% dos pulmões dela estavam comprometidos.
Ana Beatriz nasceu com covid-19, ficou internada na UTIN (Unidade de Terapia Intensiva Neonatal) do hospital estadual Santa Casa, em Cuiabá, mas não precisou de ventilação mecânica. Paula Machado, cunhada de Patrícia, acompanhou todo tratamento de Ana Beatriz e hoje é quem cuida da bebê.
"Morreu sem colocar nos braços o maior sonho"
Aos 38 anos, Patrícia tinha três filhos e engravidou de uma menina, que tanto sonhou junto com o marido. Desde então vinha curtindo a maternidade. Em um ensaio fotográfico realizado com a família, a dona de casa fez uma "cara de espanto" junto dos três filhos, enquanto o marido puxava as roupinhas de menina. Em outra foto, ela aparece entre os filhos com a barriga completando a palavra "love", amor em inglês.
Com 34 semanas de gestação ela passou mal com sintomas da covid-19 e foi internada às pressas com falta de ar, no hospital regional de Colíder. Devido ao estado de saúde dela, foi necessário um parto cesáreo. Além da covid-19, Patrícia teve eclampsia.
Após o parto, Patrícia ficou por 33 dias internada na UTI. Ela sequer teve a chance de ter contato com a filha, que tanto desejou. Devido à doença, durante o parto, Patrícia foi intubada e ficou em coma induzido.
Morreu sem colocar nos braços o maior sonho que era ter uma menina. Patrícia estava com 95% do pulmão comprometido. Semana passada, os médicos foram tirando a sedação e ela abriu os olhos, mas nunca falou. Depois que ela entrou no hospital, que fizeram o parto, ela não conversou mais
Paula Machado, cunhada de Patrícia
Após a alta, Ana Beatriz viajou de Cuiabá para Pontes e Lacerda, onde está sendo cuidada por Paula e pelo marido Luiz Fernando, irmão de Patrícia. Agora, Valtair Porto tenta a transferência do frigorífico onde trabalha em Colíder para Pontes e Lacerda para ficar próximo da família. Desta forma, segundo Paula, a família conseguirá dar apoio ao marido e aos filhos de Patrícia.
MPT cobra medidas e faz críticas a JBS por surto
A Vigilância Sanitária esteve no frigorífico e apontou diversas irregularidades, que foram repassadas ao MPT. Foram realizadas três inspeções na unidade da JBS, entre junho e julho, para fiscalizar o cumprimento de uma recomendação expedida pelo MPT ao frigorífico em abril, ainda no início da pandemia. No último relatório produzido pelo órgão, é mencionada a situação de Patrícia, que teria sido infectada pelo marido e teve de realizar um parto prematuro.
O MPT-MT ajuizou, no último dia 22, uma ação civil pública com pedido de liminar contra a JBS S/A, unidade de Colíder, solicitando que todos os empregados e trabalhadores terceirizados fossem afastados pelo período mínimo de 14 dias, além de outras medidas de prevenção para evitar a disseminação do novo coronavírus no local.
A ação civil pública pediu que a Justiça do Trabalho obrigasse o frigorífico a realizar, a partir do 10º dia de afastamento, testagem de todos os funcionários para identificação de casos de covid-19. A ação contém 29 itens e, em caso de descumprimento do frigorífico, os procuradores do trabalho pediram a fixação de multa diária de R$ 50 mil por item não atendido e por trabalhador não afastado das atividades.
A ação é assinada pelos procuradores do MPT Ludmila Pereira Araújo e Marcel Bianchini Trentin. Os procuradores incluíram nos autos a morte de Patrícia, que até então ela e a filha tinham sido relatadas como infectadas pela exposição de Porto no frigorífico. Eles destacam ainda que "de 20 de maio de 2020 até o momento, a empresa já conta com 84 casos confirmados pela covid-19".
Na solicitação, os procuradores relatam que a cidade onde está o frigorífico teve 498 casos, sendo que 16,8% dos casos ocorreram na unidade da JBS, sem levar em consideração parentes dos infectados, como foi o caso de Patrícia. "Comparando-se a taxa de incidência do vírus no município como um todo (33.438 habitantes e 498 casos), verifica-se uma taxa de 1,49% da população. Já a taxa de incidência dentro da planta da JBS (602 funcionários e 84 casos), revela a porcentagem de 13,95%. Ou seja, há uma incidência da contaminação na unidade do frigorífico 12 vezes mais intensa do que na população em geral do município", disse o MPT.
Os relatórios da Vigilância Sanitária destacaram que a JBS não vêm custeando nenhum teste para detecção da covid-19 em seus funcionários e terceirizados. O frigorífico disse a Vigilância Sanitária que os trabalhadores suspeitos de terem sido infectados pelo novo coronavírus são encaminhados à unidade básica de saúde do SUS. "A Ré [JBS] se utiliza do sistema público de saúde para realização de testagem de seus trabalhadores quando, por sua própria forma de agir, como aqui exposto, estes possam ter sido contaminados", criticaram os procuradores.
"Os documentos e fotos que acompanham a ação civil pública mostram que a empresa não observa medidas para implementação de distanciamento interpessoal mínimo nos postos de trabalho e não fornece proteção respiratória caracterizável como EPI (Equipamento de Proteção Individual) apto ao afastamento dos riscos de contaminação por covid-19, tampouco de máscaras faciais que atendam minimamente aos padrões estabelecidos pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas)", explicou o MPT-MT.
A Vigilância Sanitária informou que a lista que o frigorífico apresentou menciona apenas trabalhadores que estavam com sintomas da covid-19 e solicitou que o frigorífico mostrasse a lista dos funcionários que testaram positivo e não tiveram sintomas da covid-19. Além disso, não há lista de trabalhadores do grupo de risco que foram afastados das atividades. "Logo, não foi afastado nenhum trabalhador contactante, o que revela omissão de afastamento de todos os trabalhadores que tiveram contato com suspeitos", concluiu o MPT.
Além disso, o MPT explicou que a cidade de Colíder não tem hospital público municipal e que doentes de covid-19 têm sido tratados no PSF Perin, que possui capacidade apenas para atendimento de pacientes com sintomas leves. Os casos de maior gravidade são encaminhados ao hospital regional da cidade, que é de responsabilidade do governo do estado. A unidade hospitalar recebe doentes de outros seis municípios da região norte, além da população indígena e do sul do estado do Pará.
Outro lado
A JBS informou que a "saúde dos colaboradores é prioridade absoluta" para a companhia e que adotou "um robusto protocolo para prevenção contra a covid-19", seguindo as orientações dos órgãos públicos e de saúde. Neste protocolo, o frigorífico disse que recebe a consultoria de médicos infectologistas e instituições de referência, como o hospital Albert Einstein, em São Paulo.
O frigorífico afirmou ainda que está prestando todo apoio a Valtair Porto e a família dele desde o afastamento, ocorrido há mais de dois meses. O texto da JBS não cita as supostas irregularidades apontadas pela Vigilância Sanitária de Colíder que foram denunciadas ao MPT.
"A empresa trata com extremo zelo e rigor a implantação desse protocolo e que inclui o monitoramento e o afastamento preventivo de seus colaboradores, conforme aplicado no caso em questão. A empresa reitera suas condolências e se mantém solidária ao seu colaborador e sua família", destaca a JBS, em nota enviada nesta manhã ao UOL.
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