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Leblon esconde passado abolicionista sob m² mais caro do país

A orla do Leblon, bairro com imóveis de luxo com o m² mais caro do país - Herculano Barreto Filho/UOL
A orla do Leblon, bairro com imóveis de luxo com o m² mais caro do país Imagem: Herculano Barreto Filho/UOL

Waleska Borges

Colaboração para o UOL, do Rio

06/10/2020 04h00

Palco da recente "briga de biquíni" e de aglomerações em bares, o bairro do Leblon, na zona sul do Rio, esconde sob o metro quadrado mais caro do Brasil um passado de resistência.

Na década de 1880, o bairro tinha um quilombo —refúgio de escravizados e ponto de encontro de abolicionistas— que ficava na chácara do comerciante português José de Seixas Magalhães, no Alto Leblon, segundo relata o pesquisador da Casa de Rui Barbosa, o historiador Eduardo Silva, autor do livro As camélias do Leblon e a abolição da escravatura.

Se antigamente produzia as camélias, símbolo do movimento abolicionista brasileiro, o terreno abriga hoje o Clube Campestre —clube de lazer de moradores da classe alta— e a favela Chácara do Céu. Moradores e frequentadores ouvidos pelo UOL contam que não há nesses lugares indicação de seu passado.

O local tem ligação direta com a origem do bairro. Antes de se tornar abrigo de homens escravizados fugitivos, conta Silva, o local integrava as terras do francês Charles Le Blond —que deu nome ao quilombo e depois ao bairro.

Quilombo do Leblon em imagem do início do século 20 - Reprodução - Reprodução
Quilombo do Leblon em imagem do início do século 20
Imagem: Reprodução

O quilombo do bairro era intelectualizado, o que o diferenciava de outras comunidades que tinham de guerrear para sobreviver, segundo conta o urbanista Augusto Ivan de Freitas Pinheiro, um dos organizadores do livro Leblon.

Entre os frequentadores, estão o diplomata e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras Joaquim Nabuco (1849-1910), o engenheiro militar e político André Rebouças (1838-1898) e o jurista Rui Barbosa (1849-1923).

"Eles discutiam a abolição, escondiam escravos e até compravam sua liberdade. Esses antiescravagistas colocavam as camélias em seus paletós, como símbolo do movimento", diz o urbanista.

As flores cultivadas na chácara de Seixas com a ajuda dos moradores do quilombo foram eternizadas na música As camélias do quilombo do Leblon, de Gilberto Gil e Caetano Veloso, em 2015.

18.jul.2020 - Movimentação intensa em bares no Leblon durante a pandemia - VANESSA ATALIBA/ESTADÃO CONTEÚDO - VANESSA ATALIBA/ESTADÃO CONTEÚDO
18.jul.2020 - Movimentação intensa em bares no Leblon durante a pandemia
Imagem: VANESSA ATALIBA/ESTADÃO CONTEÚDO

As camélias apagadas do Leblon

Atualmente, o bairro ganhou as redes sociais com uma briga —uma mulher de biquíni em um carro conversível revidou após ser atingida com uma garrafa d'água atirada por outra, que estava em um bar.

A madrugada do bairro tem sido marcada por bares lotados e aglomeração. Sem máscaras, frequentadores se reúnem em frente a bares na altura das ruas Dias Ferreira e Venâncio Flores, sem seguir as regras de distanciamento social.

Presidente da Amaleblon (Associação de Moradores e Amigos do Leblon), Evelyn Rosenzweig, lamenta o pouco conhecimento da história do passado abolicionista da região.

"Muitas pessoas do bairro sequer conhecem a Chácara do Céu. Conhecer a história do Rio não é uma característica do carioca", avalia. A entidade não possui contudo projetos para resgatar o passado de resistência do Leblon.

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Na ilustração da Revista Illustrada, de 1888, José de Seixas Magalhães entrega camélias para a princesa Isabel
Imagem: Reprodução

A história das camélias é revivida a muito custo até mesmo por moradores de longa data. O técnico em eletrônica Paulo César Ferreira, 63, morou na comunidade Chácara do Céu por 40 anos. Por curiosidade, foi atrás da história da família de sua esposa, Rosana Maria do Nascimento, 59, que nasceu e se criou na comunidade.

Por meio de registros em livros, descobriu que a família de Rosana descende de escravizados que se refugiaram no quilombo do Leblon.

Muitos não sabem dessa história. Eu mesmo só fui descobrir há cerca de sete anos, quando mergulhei a fundo em busca de respostas à minha curiosidade. Infelizmente, a história do quilombo está se perdendo e não é colocada em evidência

Paulo César Ferreira, técnico em eletrônica

O Clube Campestre, na rua Alberto Rangel, ainda guarda resquícios físicos da história, segundo afirma Sérgio Rodrigues, um dos administradores do local.

"Aqui funcionava a Casa Grande. A parede do restaurante ainda é a mesma daquela época. Durante a noite, escuto coisas estranhas, como vozes e portas batendo quando tudo está vazio", conta. Fora isso, não há menção sobre a chácara de Seixas.

Para outros moradores, os detalhes do passado já se perderam. É o que diz Nivaldo Ossian, gerente do Clube Federal, que mora há 16 anos no bairro. "A gente ouve falar, mas nada com clareza", conta.

Há exceções. Há 40 anos no bairro, o jornalista e assistente social, Rodrigo Tolentino, 46, é uma delas. Ele mantém uma página em uma rede social onde expõe fotos do Leblon que já não existe mais.

Acho que essa história do quilombo deveria ser esfregada na cara de moradores atuais do bairro que têm uma visão social deturpada

Rodrigo Tolentino, jornalista

Para o historiador Eduardo Silva, o desconhecimento é fruto de um esforço para esquecer o passado escravagista assim como a luta para reverter esse cenário e suas consequências nos dias de hoje.

As pessoas, em grande parte, desconhecem ou fazem força para desconhecer o nosso passado escravista, que foi terrível, tétrico. Elas rejeitam o passado abolicionista, da mesma forma que recusam, primeiro, o passado escravista, e, portanto, segregacionista e racista no mais profundo da alma. [A escravidão] encontra-se bem presente e faz parte das tensões sociais e raciais contemporâneas

Eduardo Silva, historiador

6.set.2020 - Vista do bairro a partir do Mirante do Leblon - WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO - WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO
6.set.2020 - Vista do bairro a partir do Mirante do Leblon
Imagem: WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO

Metro quadrado mais caro do Brasil

Segundo o urbanista Augusto Ivan, o Leblon começou no início do século 20 a crescer em função do bonde que fazia a ligação com o centro. "O bairro começa a receber moradores da classe média que estavam fugindo do centro. Foi o último bairro da zona sul a ser ocupado", afirma.

A partir daí, atraiu uma população majoritariamente branca. De acordo com dados do Censo de 2010, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os mais recentes disponíveis, o bairro abriga 46.044 moradores, sendo 20.305 homens e 25.739 mulheres. Do total, 87% dos habitantes se autodeclaram brancos, enquanto 8,9% se dizem pardo, e 3,4%, pretos. Amarelos e indígenas não chegam a 1%.

Cenário de novelas da TV Globo, o bairro abriga alguns dos imóveis mais caros do país.

Segundo o Secovi-RJ (Sindicato da Habitação do Rio de Janeiro), o preço médio do m² no Leblon chegou a R$ 21.204 em setembro —o mais caro do Brasil, segundo Marcelo Borges, diretor de Condomínio e Locação da Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis.

Em comparação com a Tijuca, na zona norte carioca, onde o valor do m² gira em torno de R$ 6.712, a diferença é de 216%.

Ainda segundo Augusto Ivan, a fama do Leblon como bairro chique vem sendo construída desde os anos 1920 e 1930, quando a região fazia parte de percurso de uma corrida internacional de veículos.

Nas décadas de 1960 e 1970, o movimento se intensificou, porque o Leblon reunia em seus bares intelectuais, artistas e jornalistas, entre eles, Chico Buarque, Vinicius de Moraes e Caetano Veloso.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que informou a legenda da segunda imagem que ilustra esta reportagem, ela retrata o Quilombo do Leblon no início do século 20, e não do século 19. A legenda foi corrigida.