Órgão que livrou juíza acusada de racismo no PR viu ataque ao Judiciário
Responsável por arquivar o processo disciplinar contra a juíza Inês Marchalek Zarpelon, acusada de racismo por citar a raça de um acusado como evidência de crime, o OE (Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Paraná) puniu três magistrados nos últimos dois anos.
No caso da titular da 1ª Vara Criminal de Curitiba, no entanto, os desembargadores a livraram com base em argumentos como o histórico de vida de Zarpelon, perseguição por parte da imprensa e até o fato de a conhecerem há quase 30 anos. Também viram um ataque ao Judiciário no fato de terem de analisar a conduta da magistrada por este assunto.
Sem mencionar o teor dos casos, o TJ-PR informou ter aberto dois procedimentos para investigar juízes em 2018, com uma punição (censura à conduta). Em 2019, foram seis apurações, que resultaram em duas penas aplicadas (uma aposentadoria compulsória e uma advertência).
O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) também pode apurar por conta própria ações contra juízes, mas delegou a tarefa à corregedoria local.
Composto por 25 desembargadores, o OE tem atribuições como aprovar propostas de orçamentos do Judiciário, analisar e julgar tanto os atos do governador paranaense, quanto crimes comuns e de responsabilidade de deputados estaduais e juízes.
Críticas à imprensa e conhecimento prévio da magistrada
O trecho polêmico da decisão de Zarpelon foi escrito no momento em que ela mensurava a pena a ser conferida a Natan Vieira da Paz, réu de 42 anos apelidado de Neguinho, que acabou condenado a 14 anos e 2 meses:
Seguramente integrante do grupo criminosos, em razão da sua raça
Relator do processo no OE foi o desembargador José Augusto Gomes Aniceto. Único negro na composição do órgão, ele afirmou em seu voto que conhece a juíza desde 1991.
"Conheci a servidora Inês atendendo a primeira vara. Era uma moça jovem, bonita, muito simpática, inteligente, muito dedicada ao trabalho, muito séria, concentrada naquilo que fazia", declarou.
Para Aniceto, foram as provas colhidas (interceptações telefônicas, fotos e vídeos), não a cor do condenado, que motivaram a condenação.
Ele acolheu os argumentos da defesa de que ela só reportou a conclusão das investigações, que associou a raça do suspeito à maneira de atuar do bando. Ao todo, nove pessoas foram condenadas, mas Natan era o único negro.
"Tenho, portanto, que não foi utilizado fator racista", disse o relator, que atribuiu a interpretação a um "equívoco técnico de redação em sinais e pontuação do período".
O TJ-PR negou ao UOL uma entrevista com Aniceto argumentando que a Lei Orgânica da Magistratura Nacional veda o juiz de "manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento (...) ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério".
Durante a sessão, realizada no fim de setembro, só a desembargadora Regina Portes estava ausente. Os outros 23 integrantes do órgão decidiram de forma unânime pelo arquivamento.
Em suas declarações, defenderam a magistrada usando a vida pregressa dela, além de afirmarem que as críticas eram um ataque ao Judiciário.
Também acusaram a mídia de tentar "denegrir a imagem de nossa instituição" ao pinçar uma palavra de uma sentença de mais de cem laudas, como afirmou o desembargador Mario Helton Jorge.
O termo "denegrir", usado por Jorge, é tido como racista por considerar algo negro como negativo. Segundo o dicionário Michaelis, a palavra significa "tornar negro" ou "difamar".
Ex-presidente do TJ-PR, o desembargador Clayton Coutinho de Camargo disse que "o juiz só deve satisfação às leis e a sua consciência". Para ele e outros desembargadores, o julgamento não deveria ocorrer, porque a magistrada é a vítima neste caso.
Passamos a desconstruir autoridade do Poder Judiciário a quem, no estado Democrático de Direito, incumbe dar a cada um o que é seu. Gostaria de emprestar a solidariedade a magistrada sentenciante
Clayton Coutinho Maranhão, desembargador do TJ-PR
O desembargador Nilson Mizuta também se colocou do lado de Inês, a quem disse ter conhecido como serventuária, e disparou contra a imprensa:
Foi vítima de linchamento pela mídia
Cabe revisão, mas é difícil acontecer
Advogado e ex-conselheiro do CNJ, José Lucio Munhoz explica que o TJ-PR seguiu a determinação do Conselho para apuração, abertura e julgamento de procedimento disciplinar. Ministério Público, OAB e qualquer conselheiro do CNJ podem pedir a revisão do julgamento ao plenário do Conselho em até um ano. Mas isso é incomum.
"Para o Conselho rever uma decisão colegiada do Tribunal, o caso deve envolver circunstância de gravidade, repercussão ou a aparência de que a decisão adotada não foi a mais acertada para o caso. É costume que isso aconteça? Não. Na maioria das vezes, o CNJ verifica que a decisão do Tribunal, punindo ou não o magistrado, se apresenta razoável e adequada", diz.
Dois pesos, nenhuma medida
Para o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente, houve erro do TJ-PR, já que a juíza poderia ser considerada uma "ré confessa".
A juíza foi explícita. Escreveu taxativamente que a distinção que ele encontrava se dava por conta da raça. Uma das manifestações do crime de racismo se dá através do discurso escrito, e ela escreveu isso. Não há como confrontar um fato real e objetivo. Está lá, escrito, o juízo de valor
Presidente da Comissão Nacional de Promoção da Igualdade do Conselho Federal da OAB, Silvia Cerqueira afirma que o comportamento da magistrada é fruto do racismo estrutural e os desembargadores foram "corporativistas" com a juíza.
Ficou muito claro que ela atrelou o comportamento do acusado à questão de raça. Houve infelicidade por parte dela e dos julgadores, que, talvez de forma corporativista, quiseram minimizar essa manifestação grave
Advogado da magistrada, Francisco Zardo considera correta a decisão do OE. Para ele, naquele trecho da sentença, a juíza apenas explicava a forma como atuava o grupo criminoso. "Foi um julgamento exaustivo e cuidadoso", afirma.
José Vicente, da Zumbi dos Palmares, critica ainda o uso da vida pregressa da juíza pelo OE para desqualificar o crime ocorrido.
Se você praticar o racismo naquele ato ou naquele gesto, não importa se todos os demais dias da sua vida tenha sido de postura irreparável. A impressão é que existem dois pesos e duas medidas em relação ao crime de racismo, especialmente se se tratar de uma integrante da justiça. Deixa a insegurança de o sistema de Justiça efetivamente tem a disposição de punir o racismo doa a quem doer
Procurada para comentar o caso da juíza, a Amapar (Associação dos Magistrados do Paraná) disse que não iria se manifestar sobre o assunto.
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