Taynã e Xawã: Tupinambás retificam nome após 10 anos de tentativas na Bahia
Dez anos depois da primeira tentativa, Faustiraci Andrade dos Santos, de 59 anos, e Rômulo Santos Pinheiro, 42, conseguiram mudar seus nomes para Taynã Andrade Tupinambá e Xawã Tupinambá, respectivamente, graças a uma decisão da Justiça de Ilhéus, no Sul da Bahia, emitida nesta semana.
O casal já havia recorrido a outras comarcas e até contratado advogados, mas só conseguiu alterar as certidões de nascimento com a ajuda da Defensoria Pública da Bahia. Ainda que ter nome e etnia registrados em documentos seja direito de indígenas, o caso é raro no Brasil. Agora, o órgão público já planeja um mutirão de mudanças de nome para tupinambás.
Há 20 anos, decidimos enfrentar o preconceito juntos. Vamos pintados e com cocares a todos os lugares. Por causa disso, sofremos humilhações. Já fomos xingados e agredidos. Essa é a luta que travamos. São conquistas como a do registro civil que nos fortalecem e nos fazem ter certeza de que estamos no caminho certo para efetivar nossos direitos."
Taynã Andrade Tupinambá, atriz, diretora de teatro e educadora
O nome dela significa, em tupinambá, "Os Primeiros Raios de Guaraci (sol)" ou ainda "Estrela da Manhã". Xawã é "Arara Vermelha".
A primeira tentativa do casal para retificar seus nomes no registro civil foi feita em 2011, mas o advogado contratado foi destituído do caso quando Taynã e Xawã perceberam que o processo estava paralisado.
A mudança do nome é apenas uma das ações dos dois para preservar suas raízes culturais. Juntos, os dois chegaram a fundar o Espaço Cultural Tupinambá, que mantinha um pequeno museu com livros, figurinos e adereços que recontam a história do Brasil "a partir do ponto de vista dos oprimidos".
Pelo ativismo, a dupla participou de conferências representando as populações originárias. Mas também a fez virar alvo de violências. "Já pegaram saco de lixo e derramaram em cima de mim. Já fui chutada por um homem de arma na mão na frente de todo mundo e ninguém fez nada para me defender", diz Taynã.
Essas agressões a fizeram desenvolver um quadro de depressão, afirma Izabel Cristina Santana Mendonça, coordenadora do Centro de Referência em Assistência Social de Olivença, distrito de Ilhéus. "Ela chegou para os primeiros atendimentos bastante fragilizada por causa dos direitos que não eram reconhecidos."
Foi a assistente social que encaminhou o casal à da 3ª Defensoria Pública Regional do Estado da Bahia. Somente em junho de 2019, o casal voltou a acionar a Justiça em busca da autoidentificação.
O direito de povos indígenas manter e desenvolver suas características e identidades étnicas e culturais é reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, proclamada pela ONU em 2007.
O defensor público, Leonardo Couto Salles, usou isso como argumento. Baseou seu pedido também no artigo 231 da Constituição Federal (que garante "aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições") e na Resolução Conjunta nº 03/2012 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que assegura a alteração do registro civil e que conste no documento o nome indígena e a etnia, que pode ser lançada como sobrenome.
Burocracia é impeditivo para alterações de nomes
Mesmo assegurados por dispositivos legais, casos como os do casal não são comuns. Durante o levantamento da jurisprudência, Salles só encontrou outros dois casos semelhantes em todo o país: um indivíduo da etnia Huni Kui no Acre há seis anos; e, no Tocantins, 60 registros foram concedidos de uma só vez, 40 para indivíduos da etnia Krahô-Kanela e 20 para Javaés.
Para Salles, a burocracia é um impeditivo, pois a alteração de nomes no registro civil por parte de indígenas requer ação judicial. Além disso, a Justiça exige uma série de documentos, como certidão negativa de antecedentes criminais, e provas de que o autor do pedido é, de fato, indígena ou descendente e de que faz uso regular dos nomes que deseja adotar oficialmente.
A dificuldade fez a Defensoria Pública de Ilhéus já planejar uma ação na comunidade tupinambá de Olivença "tão logo as condições sanitárias permitam", diz Salles.
Professor da Escola Indígena de Olivença, José Whashington Alves do Nascimento já reuniu toda a documentação e retificar o nome para Atã Xohã (Forte Guerreiro, em tupinambá). Não teve sucesso ainda, porque o juiz do caso determinou ser necessária audiência, ainda sem data definida, para ouvir testemunhas.
"Dei entrada na mesma época que Xawã e Taynã. Anexei as listas de presença no trabalho, todas assinadas como Atã Xohã. Até agora, nada."
Segundo ele, os problemas de autoidentificação não param aí. Ano passado, quando teve de renovar seu RG, ouviu do atendente que não poderia tirar foto usando cocar ou com o rosto pintado. "Quando a polícia vem aqui na aldeia dar um 'baculejo' na gente, como é que vai me reconhecer pela foto do meu RG se eu só ando na comunidade pintado e com cocar?", ironiza.
Para Atã e Taynã, os problemas nascem nos cartórios, que dificultam o registra de crianças com nomes indígenas. "Eles dizem que não são nomes brasileiros", afirma Taynã.
Estudante de direito, Genilson dos Santos de Jesus, conhecido como Taquari Pataxó, reconhece que há cartórios que impedem a prática, tanto que ele é procurado por outros indígenas. Ele mesmo, porém, não enfrentou empecilhos para registrar a filha com o nome de Tsayra Kramuhuá no cartório do Hospital regional de Porto Seguro.
É preciso entender que o Estado Brasileiro é uma instituição e não uma nação. Antes dele, já havia outras nações aqui. A proposta de criação dos cartórios sempre serviu de manobra para deslegitimar a população indígena dentro do território. E o nome é o primeiro passo pra isso."
Xawã Tupinambá, atriz, diretora de teatro e educadora
Procurada pela reportagem, a Associação dos Registradores Civis das pessoas Naturais do Estado da Bahia (Arpen-BA) informou, em nota, desconhecer que cartórios de registro civil de Ilhéus se neguem a registrar nomes de origem indígena. Isso, acrescenta, contraria a resolução do CNJ e do CNMP.
"Em caso concreto de recusa no registro de nascimento com nome indígena, a entidade orienta a que seja realizada comunicação imediata ao juiz de Direito da Comarca ou à Corregedoria Geral da Justiça das Comarcas do Interior do Estado da Bahia, órgãos responsáveis pela fiscalização dos serviços cartorários no Estado", diz a Arpen-BA.
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