Bloco cobra taxa de ambulantes e revolta foliões: 'Milícia no Carnaval'
Vendedores ambulantes relatam que um bloco de Carnaval não oficial recém-criado no Rio de Janeiro cobrou uma taxa de R$ 50 para camelôs acompanharem o cortejo e venderem cerveja.
A atitude de organizadores do cortejo do Só Toca Bloco, na noite de sábado (11), no Aterro do Flamengo, revoltou foliões, músicos amadores do Carnaval de rua e parlamentares que viram na prática uma forma de exploração de trabalhadores informais em espaço público, chegando a compará-la com extorsões cometidas por milícias contra moradores de bairros do Rio de Janeiro.
As críticas também pontuaram que o Carnaval de rua "não pode ser privatizado".
Em nota, o Só Toca Bloco informou que o pagamento de R$ 50 foi um "patrocínio" por parte dos ambulantes, com objetivo de ter um trabalho em que pudessem vender a noite toda —o bloco começou às 23h e durou até o amanhecer, reunindo centenas de foliões.
No entanto, ambulantes relataram ao UOL constrangimento com o pagamento da taxa e temor de represália. Por outro lado, houve vendedores informais que rejeitaram qualquer tipo de extorsão e definiram a cobrança como um "fortalecimento" (uma ajuda) aos músicos do bloco.
'Paguei por medo de represália', diz ambulante
A organização para o pagamento da taxa aconteceu em um grupo de WhatsApp chamado "Ambulantes @SóTocaBloco". Na descrição, organizadores destacavam que era um grupo de "parceiros" do evento e que a contribuição mínima era de R$ 50.
Uma ambulante conversou com a reportagem na condição de anonimato. Ela conta que estava no grupo de WhatsApp e que, quando chegou para trabalhar, foi questionada por outro colega se faria o pagamento no início ou ao fim do cortejo.
Ela disse que pagaria depois de trabalhar, já que o único dinheiro que tinha foi utilizado para comprar a mercadoria. "[Meu amigo] disse: 'você sabe como é, se não pagar, o Fábio remove do grupo'. E eu falei: 'Então remove', até xinguei um palavrão", conta.
A ambulante diz que, por ter dito que pagaria ao fim do bloco, não recebeu a pulseira amarela que identificava os "camelôs parceiros" —que pagaram a taxa.
Trabalhei, não vendi nada. Para não dizer exatamente nada, vendi R$ 100 e pouco em um bloco em que todo mundo esvaziou o carrinho. [...] Mas eu peguei o dinheiro, chamei o Fábio e falei: 'Olha só, não vendi nada, mas está aqui os R$ 50'. Fiquei até com medo, paguei por medo de represálias. Tenho um casal de filhos e, se não for isso, eu não levo pão pra casa
Ambulante que preferiu não se identificar
A reportagem do UOL esteve no local e constatou dezenas de ambulantes. Os organizadores do bloco não divulgaram quantos camelôs pagaram a taxa.
Já outro ambulante não identificado defendeu a prática em áudio encaminhado à reportagem. "Ninguém está cobrando. É um fortalecimento para [os músicos] comprarem uma água, trocar uma bateria, uma paleta. Ninguém é milícia e está cobrando nada, estamos dando o fortalecimento para que continue os blocos. É uma mão lavando a outra."
O UOL procurou Fábio Florêncio, um dos organizadores do bloco citado pela ambulante, mas ele não se manifestou até a publicação desta reportagem.
'Tática miliciana', dizem parlamentares
Isabel Christina, ambulante e idealizadora d'A Garagem Delas (ponto de apoio para vendedores informais), diz que a prática é nociva para a categoria e alerta que outros eventos, fora do Carnaval, já praticam a cobrança.
"Está errado pagar para trabalhar. Não existe bloco sem camelô. [...] Já pensou um monte de folião sem ter camelô para vender uma água e uma cerveja?".
Tivemos crise de fome, de miséria, e vem um cara cobrando?
Isabel Christina, ambulante
A deputada estadual Mônica Francisco (Psol-RJ) chamou a cobrança de "tática miliciana".
A vereadora do Rio Mônica Benício (PSOL) fez coro. Na avaliação dela, "o Rio de Janeiro não precisa de mais milícias".
O vereador Tarcísio Motta (PSOL) também condenou a prática. "Cobrar um valor de camelôs que querem acompanhar um bloco é dar um tiro no pé do Carnaval de rua carioca."
Áudios alertaram para 'confusão' ao dividir camelôs
Áudios atribuídos a um dos organizadores do bloco aos quais o UOL teve acesso mostram como se deu a orientação aos camelôs.
"De preferência só vai participar do evento quem contribuir. As pessoas que não contribuírem com o evento, vamos organizar para jogá-los ou lá para frente para caraca, longe dos foliões, ou muito no final", diz um organizador.
"Se vocês verem [sic] sem a pulseirinha de identificação, porque não temos dinheiro para abadá, podem chegar junto e [dizer]: 'Coé, a gente que está promovendo aqui o evento'. Vocês têm todo o direito de chegar para a pessoa e dar o papo reto, porque são vocês que estão arcando [...] É simples a parada: é para todo mundo contribuir com o evento."
Em resposta, um ambulante não identificado alerta que "oprimir o camelô de ir para trás ou para frente" do bloco vai "dar confusão". O organizador orienta então a agir com "calma e cautela".
Em nota publicada em rede social, mas tirada do ar uma hora depois, o Só Toca Bloco explicou que a cobrança de taxas foi adotada porque foliões não ajudaram financeiramente em eventos anteriores.
Segundo o bloco, a ideia de organizar um cortejo foi dos ambulantes. "Partiu deles a vontade de fazer uma contribuição e organizar em conjunto o cortejo. Eles pediram uma organização para ter um evento na rua e ninguém foi explorado ou impedido de trabalhar."
Após a repercussão negativa, o bloco deletou sua página no Instagram.
Desliga dos Blocos pede que camelôs 'não aceitem abuso'
Nas redes sociais, foliões rechaçaram a prática. "Exploração dos mais frágeis. Vergonhoso!", diz um comentário. "Essa prática não pode virar rotina, é algo absurdo", apontou outra crítica.
Mas houve também quem a defendesse. "Músicos, não caiam nessa, se valorizem! Tapinha nas costas não paga boleto e a pandemia mostrou isso muito bem!", diz outro usuário.
No entanto, há outras formas de financiamento dos músicos fora do Carnaval de rua, segundo aponta André Videira de Figueiredo, sociólogo e músico amador.
"Criou-se um dispositivo muito criativo que é a formação de bandas dentro dos blocos, que podem fazer suas festas pagas, receber dinheiro e se sustentar. Foram soluções para que o Carnaval resistisse à monetização, mercantilização e submissão aos mecanismos de mercado e lucro. Quem está na rua não está para ganhar dinheiro", defendeu.
Para Videira, a atitude do Só Toca Bloco vai contra um movimento de valorização da festa.
"Eu acho perverso que a parceria [com ambulantes] acabe servindo ao propósito de que pessoas que tocam na rua extraiam dinheiro dos trabalhadores mais precarizados, que às vezes dormem na rua. Não sei se é ilegal, mas é absolutamente imoral", disse Videira.
Ele também discorda que foliões banquem cortejos. "Folião não tem que pagar porque o Carnaval da rua é ato livre."
A Desliga dos Blocos, que reúne blocos não-oficiais do Carnaval do Rio de Janeiro, também criticou a prática. "Se confirmada, merece o repúdio de todos os que amam o Carnaval de rua, pois mexe com um princípio básico comum a todas as formas de organização."
Em comunicado nas redes, a Desliga pede que os ambulantes "não aceitem esse abuso" e que os responsáveis pela cobrança "se reposicionem".
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