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Homem é suspeito de manter 12 venezuelanos em condição análoga à escravidão

Venezuelanos conversam com membros da operação que denunciou trabalho escravo no interior de SP  - Divulgação
Venezuelanos conversam com membros da operação que denunciou trabalho escravo no interior de SP Imagem: Divulgação

Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL, em São Paulo

25/06/2022 04h00

O bacharel em direito Carlos Eduardo Saraiva Bicas, 38 anos, é investigado por manter 12 venezuelanos trabalhando em regime análogo à escravidão na cidade de Cafelândia, a 411 km de São Paulo. Ele foi alvo de uma operação conjunta do MPT (Ministério Público do Trabalho), Ministério do Trabalho e Previdência Social, Defensoria Pública da União e Polícia Federal.

Diante das condições de trabalho, um dos homens fugiu da fazenda e procurou o Ministério Público, que oficiou a Polícia Federal. "Sabendo do sucesso da fuga de um deles, os outros também fugiram em 8 de junho, último dia em que trabalharam", diz Paulo Warlet, coordenador de Combate ao Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo.

Procurado por UOL, Bicas nega as acusações e promete processar os membros da operação. "Isso aí é mentira, eles foram embora porque quiseram", afirmou. "Aqui não teve trabalho escravo. Tenho um áudio de um deles falando bem da comida (...) Eles apenas trabalharam uma semana sem registro, e isso nós vamos pagar. Não houve trabalho escravo."

Entretanto, o coordenador regional da Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo) no MPT, Marcus Vinícius Gonçalves, constatou "degradância do meio ambiente de trabalho, a falta de remuneração, além de retenção de documentos e indícios da prática de tráfico de pessoas", diz. "Trata-se de um caso de redução de trabalhadores à condição análoga à escravidão."

De acordo com a denúncia, uma mulher e 11 homens com idade média de 23 anos, uma adolescente e uma criança —poupadas do trabalho— chegaram em maio a São José do Rio Preto, a 440 km da capital, quando foram levados à cidade de Júlio Mesquita (a duas horas de distância), onde ficaram alojados.

"No momento da chegada, o turmeiro [Bicas, contratante de trabalhadores braçais para o campo] confiscou os cartões-alimentação entregues em Boa Vista [capital de Roraima]", diz o MPT. Com valor aproximado de R$ 700, os cartões ajudam os venezuelanos a comprar comida quando chegam ao Brasil.

"Um dos cartões foi usado de imediato para pagar o transporte de São José do Rio Preto para Júlio de Mesquita", afirmou Warlet ao UOL. "Só foram devolvidos depois que o empregador foi ouvido pela Polícia Federal."

Venezuelo mostra marmita que usavam para se alimentar: eles comiam apenas arroz e feijão, diz denúncia - Divulgação - Divulgação
Venezuelo mostra marmita que usavam para se alimentar: eles comiam apenas arroz e feijão, diz denúncia
Imagem: Divulgação

"Não peguei o cartão de ninguém (...), gastaram com eles", rebate Bicas. "Compraram roupa no meu nome. Estou com uma dívida de R$ 900 numa loja.

Mesmo morando em Júlio Mesquita, os venezuelanos trabalhavam colhendo laranjas em Cafelândia, a uma distância de duas horas. Desde o dia 25 de maio, eles pegavam o ônibus por volta de 5h e chegavam na fazenda às 7h, trabalhavam até as 15h e chegavam ao alojamento por volta das 17h.

Segundo Bicas, os venezuelanos "trabalharam apenas uma semana e começaram a me dar problema". "Aqui no Brasil se paga um mês, não em apenas uma semana", diz.

Em depoimento prestado ao Ministério Público do Trabalho, um venezuelano disse que o grupo assinou um pré-contrato com a promessa de trabalhar 44 horas semanais, com registro em carteira, salário de R$ 1.500 e alojamento custeado pelo empregador.

Nada disso foi respeitado, segundo a denúncia. Durante os 20 dias em que teriam trabalhado, os venezuelanos não teriam recebido nenhuma remuneração, "exceto o valor de R$ 50, que teve que ser devolvido ao empregador para o custeio de alimentação".

Eles não teriam recebido equipamentos de proteção, como luvas e botas, a água potável e os copos eram insuficientes, não haveria banheiros, mesas e cadeiras para refeição.

A operação diz que os trabalhadores só recebiam arroz com feijão, levados em potes de plástico, sendo obrigados a comer a refeição "fria e com risco de azedar".

Bicas rebate e afirma que os trabalhadores "comiam muito bem" e que não era obrigado "a dar comida a ninguém, isso está no contrato", diz. "Vou mover uma ação contra o promotor de Justiça sobre citar trabalho escravo (...) Vou processar o promotor e o defensor público sim (...) Sou bacharel em direito e sei dos meus direitos."

"Eles queriam comer carne e arepa [espécie de pão de milho] todo dia", afirma. "Pedi para eles saírem, e a irmã do prefeito pegou um ônibus e levou eles embora." Gonçalves, do MPT, afirma que apenas a mulher, que trabalhava como cozinheira, foi demitida, "mas os demais saíram por livre e espontânea vontade".

A denúncia diz ainda que Bicas assediava os trabalhadores ao impedi-los de sentar-se ao lado de mulheres porque eles iriam "abusar" delas. Ele também os ameaçaria dizendo que tinha contatos na Polícia Federal e que por isso os 12 poderiam ser mandados de volta para a Venezuela a qualquer momento, o que Bicas nega.

Eles eram transportados em veículo que não possuía a autorização para o transporte de trabalhadores rurais." Ministério Público do Trabalho

A fuga

Os venezuelanos fugiram para a cidade de Marília, a 445 km da capital, pernoitando em um abrigo municipal.

O empregador, no entanto, teria retido os documentos dos imigrantes, incluindo CPFs e os cartões-alimentação.

Segundo os imigrantes, foram recuperados oito dos 11 cartões que estavam em posse do turmeiro.

Bicas pode ser preso?

O MPT e a Defensoria Pública da União assinaram com a Fazenda Ventura —onde eles trabalharam— e com Bicas um acordo concedendo aos imigrantes o direito de receber as parcelas do seguro-desemprego, as verbas rescisórias, além de uma indenização por danos morais individuais no valor de R$ 5.000 para cada trabalhador.

Procurada por telefone e e-mail, a Fazenda Ventura não respondeu nem atendeu as chamadas. Bicas afirma que não pretende "pagar nada aqui, vamos recorrer de tudo. Somos trabalhadores".

Os venezuelanos conseguiram recolocação profissional, e já estão trabalhando em um frigorífico em Mato Grosso.

Um inquérito foi aberto pela Polícia Federal em Marília que vai avaliar se encaminha denúncia ao MPF (Ministério Público Federal) contra Bicas pelos crimes de Trabalho Escravo (pena de dois a oito anos de prisão) e tráfico de pessoas (pena de quatro a oito anos). Caberá ao MPF oferecer ou não denúncia à Justiça Federal.

Operação Acolhida falhou?

O grupo que revelou o caso também critica a Operação Acolhida, responsável por direcionar os venezuelanos que chegam ao Brasil aos empregadores interessados. Comandada pelo Exército, trata-se da principal estratégia do governo para diminuir a pressão sobre Roraima após a crise na Venezuela. Desde abril de 2018, mais de 64 mil venezuelanos foram levados para 778 municípios brasileiros, segundo o governo.

Procurado, o Exército pediu para encaminhar as perguntas ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, que não respondeu até a publicação desta reportagem.

De acordo com Warlet, a Operação não verifica os documentos apresentados pelas empresas que desejam contratar venezuelanos. "O empregador que se apresentou para contratar os 12 venezuelanos era inepto, um MEI [Micro Empreendedor Individual] para atuar como cabeleireiro e comércio de bijuteria, nada parecido com a atividade econômica que declarou", afirma.

Bicas teria se apresentado como dono da Empreiteira Paulista, "uma empresa que não existe", e ainda assim contratou funcionários para trabalhar na colheita de laranjas."Não haveria como a Operação Acolhida entregar pessoas nessas condições", diz Warlet. "Não sabemos o que está acontecendo a outros venezuelanos que estão sendo interiorizados."

Segundo Gonçalves, do MPT, "as autoridades realizadoras da operação notificarão o Exército Brasileiro sobre o resgate em Cafelândia (...) além de recomendar o aprimoramento dos controles, checagem e fiscalização das empresas que solicitam a mão de obra de venezuelanos para utilizá-las em suas operações".

A Operação Acolhida é uma iniciativa louvável que traz esperança para aqueles que sofrem com a migração forçada e buscam reconstruir suas vidas em um novo país, inclusive oportunizando o ingresso no mercado de trabalho. Mas entendemos que há espaço para um aperfeiçoamento do processo, o que evitaria casos como este." Marcus Vinícius Gonçalves, do MPT

Os integrantes da operação afirmam que Bicas submeteu um novo pedido junto ao Exército para trazer outros 40 venezuelanos para São Paulo.