'Não comi nem bebi com medo de veneno', diz idosa sequestrada por golpistas
Ao verificar o barulho nos fundos do primeiro andar de sua casa, Maria Conceição de Oliveira, 75, se deparou com quatro estranhos dentro do imóvel onde mora sozinha. Um dos homens tomou a palavra e disse que eles estavam no sobrado por serem os enfermeiros escalados para cumprir uma ordem judicial de internação.
Dick latia, incomodado com a agitação. Sua dona obedecia. Sem saber que estava caindo num golpe, seguiu com os enfermeiros para a ambulância. Mas o veículo era espartano em equipamentos médicos. Conceição falou ao UOL que se sentiu num carro de aplicativo —não em uma viatura de saúde. As perguntas sobre o destino e os motivos da internação eram mal recebidas e ela decidiu se calar.
O caso aconteceu em 25 de novembro e ganhou apelido no meio policial: crime dos golpistas que se passaram por enfermeiros para internar idosa e vender a casa. Ela sumiu da rua Marcílio Dias, na Lapa, uma rua de casarões antigos na zona oeste de São Paulo.
No dia seguinte um vizinho estranhou um trio de homens jogando os móveis do sobrado em uma caçamba colocada na frente do portão. Ele é policial civil e perguntou: "onde está a Conceição?".
A resposta de que ela havia se mudado e não era mais dona do imóvel não convenceu o raciocínio treinado e mais detalhes foram solicitados.
Outra vez os criminosos receberam mal as perguntas e deixaram claro que o visitante não era bem-vindo. O policial civil sacou uma arma: o telefone. Discou 190 e todo mundo foi parar na delegacia. O caso começou a ser esclarecido.
Medo de envenenamento
Era começo da noite de sábado, 26 de novembro, e, a esta a altura, fazia um dia e meio que a idosa estava fora de casa. Na sexta, ela viajou horas com desconhecidos e desceu numa área rural —de acordo com ela, impossível de ser identificada. Conversou com um responsável que se apresentou com pastor e foi levada para um quarto. Não comeu nem bebeu nada desde então.
Fiquei trancada e rezei. Eu não comi e nem bebi com medo de estar envenenado."
A idosa não sabia, mas estava em Santa Isabel, cidade da região metropolitana de São Paulo a 66 quilômetros do sobrado onde morava. Foi tratada como uma paciente, mas a forma como as perguntas que fez perturbou os "enfermeiros" preocupava. Era um medo misturado com desorientação.
Grilagem urbana
A situação era insustentável para a idosa. Ainda que a torneira do banheiro no quarto fornecesse uma fonte segura de água, o estômago reclamava. Mas no plantão do 91º Distrito Policial de São Paulo máscaras caíam. Os homens levados para a delegacia contavam que o sobrado fora comprado por R$ 190 mil.
A história não convenceu os policiais civis. O UOL consultou imobiliárias para saber o valor dos casarões da região e o metro quadrado mais barato —em imóveis degradados como o de Conceição— sai por R$ 5,5 mil. Com o terreno do sobrado de 290 metros quadrados, o preço de mercado gira em torno de R$ 1,6 milhão.
Desta vez eram os criminosos que estavam em situação insustentável. A venda não seria um negócio, mas caridade e logo eles confessaram que estavam aplicando um golpe. Contaram que pagaram três meses de internação para a dona da casa e neste meio tempo iam vender o imóvel.
Segundo a polícia, eles também revelaram como souberam da existência de uma casa em que morava uma senhora de 75 anos e sem parentes: foram avisados pelo vigilante da rua. O homem foi encontrado e levado para a delegacia. Durante o depoimento, admitiu que ganhou R$ 20 mil pelo "serviço" —a venda do casarão.
O resgate
A pergunta do policial civil vizinho —onde está Conceição?— também foi respondida na delegacia. Foi no começo da noite de sábado que os criminosos revelaram onde ela havia sido internada.
Os policiais civis foram atrás da idosa. A estrada em melhor condição não aparecia no GPS e foi preciso improvisar o caminho, o que levou o carro a atolar. Ela só retornou para casa às 4h da madrugada de domingo.
Ao entrar, Conceição sentiu falta de um monte de coisas. Móveis foram parar na caçamba em frente ao sobrado e as dezenas de gatos que ela tem sumiram. Os fugitivos deram sorte. Os criminosos mataram um filhote e colocaram no congelador para dar sustentação ao argumento de que ela tinha problemas de saúde.
Dick, o cachorro inseparável, foi devolvido no dia seguinte. Uma vizinha apareceu contando que reconheceu aquele cão preto de grande porte vagando pela principal avenida do bairro. Bicho criado dentro do terreno de casa, o atropelamento era questão de tempo. Mas o animal estava assustado e foi preciso usar uma linguiça para atraí-lo.
Estelionato e sequestro
Conceição contou que há 20 anos mudou para o sobrado onde foi cuidadora da antiga proprietária, que não tinha parentes e morreu em 2019. Desde então, ela vive no local, que considera seu "por usucapião". O caso do sequestro foi parar no 7º DP de São Paulo e o delegado Ubiraci de Oliveira disse que a propriedade da casa não está em questão e que a idosa é vítima.
Mas havia uma série de questões a esclarecer. Pouco menos de um mês depois do sequestro, dois homens foram indiciados. O comprador foi considerado principal responsável e vai responder por estelionato e cárcere privado. O vigilante acabou indiciado por estelionato.
Pelo entendimento do delegado, o comprador agiu de má-fé ao aceitar fazer negócio pagando um valor tão abaixo de mercado. De acordo com as investigações, ele planejou o que fazer depois da saída da idosa da casa —assim que ela foi levada de ambulância, uma caçamba foi colocada na frente do sobrado e a mobília do casarão foi destruída e jogada fora.
O trabalho da polícia não apontou envolvimento direto da clínica para onde Conceição foi levada. O dono do estabelecimento foi ouvido de forma genérica no dia em que o crime foi desvendado. Não houve novo depoimento.
O mesmo ocorre com a ambulância usada para transportar a idosa. Imagens mostram a empresa e dois números de telefone. Ainda assim, nenhum representante foi contatado. Como consequência, os enfermeiros não foram ouvidos para saber se tiveram participação no golpe e qual a origem da ordem de internação fake.
A participação de mais uma pessoa no golpe traria diferença para a investigação porque caracterizaria o crime de associação criminosa —quando três ou mais indivíduos se juntam para cometer um delito.
O delegado declarou que mais apurações demandariam tempo e seriam uma oportunidade para impunidade. Ubiraci disse que preferiu garantir o indiciamento de dois suspeitos do que ampliar a brecha para o caso ficar sem responsabilização.
Os dois indiciados respondem em liberdade — e Conceição tem medo. Ela acredita que o plano dos golpistas incluía a morte dela.
Quando vendessem [o sobrado], acho que me matariam. Iam jogar o corpo num mato lá por aqueles lados [da clínica em Santa Isabel]."
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