Gestação interrompida, medo e luta: como o garimpo afeta mulheres indígenas
A indígena Alessandra Korap, 38, percorre quilômetros todos os dias para visitar aldeias do território munduruku e conversar com mulheres sobre os impactos invisíveis do garimpo ilegal.
Além do rastro de destruição observado nas imagens de rios secos, a extração ilegal do ouro nas terras indígenas yanomami, kayapó e munduruku tem provocado contaminação do leite de mulheres que amamentam, interrupção de gestações e doenças. Relatos de abusos sexuais e medo de perder filhos adolescentes para a corrida pelo ouro são frequentes.
Alessandra conta que, nos últimos meses, começou a ouvir de jovens mulheres que os filhos nasciam "estranhos", sem saber ao certo como se referir às sequelas deixadas pelo mercúrio, utilizado para a extração do ouro.
Segundo a Fiocruz, o mercúrio afeta diretamente o sistema nervoso central, causa problemas cognitivos e motores, perda de visão, doenças no coração e outras debilidades.
O que mais me impressionou foi quando uma das meninas falou que a irmã teve filho, mas ele saiu 'feio', saiu 'estranho'. Elas começaram a perguntar: 'Por que nossos filhos estão saindo feios'?"
Alessandra Munduruku, liderança indígena
Em uma parte do território munduruku não havia médicos disponíveis para fazer exames nos últimos anos. A pedido de lideranças indígenas, técnicos da Fiocruz fizeram testes no ano passado. Em setembro, com os resultados, as mulheres começaram a compreender o que estava acontecendo.
"Não imaginavam que o nosso corpo, o nosso leite, que é a fonte de amamentação, estava sendo contaminado. Foi algo muito dramático para nós", diz.
A preocupação com a contaminação dos alimentos também é crescente. Uma missionária conta que uma mulher indígena reclamou que "os olhos dos peixes estão mudando, parecem que estão soltos" e outros animais também parecem doentes. Por isso, os indígenas estão com medo de se alimentar.
A mesma missionária do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) —que atua em território yanomami e pediu para não ser identificada— ouviu queixas sobre a floresta "cheia de buracos" e os rios "amarelos".
Hoje a floresta está doente. Quando nossa floresta está doente, todos nós ficamos doentes."
Mulher yanomami
Na busca pelo atendimento de saúde, mais problemas. Segundo a missionária, nenhuma mulher yanomami se desloca sozinha aos postos de saúde para evitar os "riscos da floresta". Precisam estar sempre acompanhadas pelos maridos, irmãos ou de outras crianças.
Ao chegarem aos postos, ultimamente se deparam com a falta de profissionais ou instalações fechadas. Nas unidades abertas, faltam medicamentos, botes e motor para se deslocarem.
Vidas contaminadas ou interrompidas
Maial Paiakan, liderança indígeina kayapó, afirma que a crise de saúde enfrentada pelas mulheres de seu povo é semelhante à vivida pelas yanomami.
Maial destaca que embora os sinais vistos em mulheres e crianças sejam cada vez mais evidentes, elas ainda lutam por direito a atendimentos, tratamentos e exames médicos que consigam relacionar a contaminação por mercúrio com as doenças observadas. "Nossa deficiência é comprovar isso, mas vemos as doenças de pele, de cabelo."
Existe ainda um outro ponto: as mulheres kayapós não falam português e têm dificuldade para explicar seus problemas de saúde aos profissionais.
Como elas vão ter um atendimento diferenciado, se não conseguem dizer o que estão sentindo? Não é um técnico ou um enfermeiro, tem que ser uma mulher indígena [no atendimento]."
Maial Paiakan, liderança indígena kayapó
Por meio de nota, o Ministério da Saúde informou que, na composição das equipes de saúde, estão "agentes indígenas de saúde e agentes indígenas de saneamento para atendimento dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas [DSEI], indígenas residentes no território que atuam como elo fundamental entre a comunidade e os demais profissionais de saúde".
Sobre a contaminação por mercúrio, afirmou que "as equipes de saúde realizam o acompanhamento de todos os casos registrados entre a população indígena."
Filhos perdidos
Para mulheres indígenas o cuidado com os filhos significa a preocupação com o futuro —são eles que vão crescer e defender o território. Não à toa, com a crise humanitária em território Yanomami vieram à tona imagens de mulheres contaminadas doentes desesperadas entregando os filhos para receber atendimento médico.
Mas o medo das mães indígenas não se restringe a problemas de saúde. Elas temem perder seus filhos para a corrida pelo ouro.
A pesquisadora da Rede Pró-Yanomami e Ye'kana, Marília Senlle, conta que muitas mães de adolescentes yanomamis temem que os filhos sejam aliciados pelo garimpo. "Eles são muito seduzidos por promessas, o tempo passa e quando percebem eles já estão instalados", afirma.
Alessandra ressalta que em reuniões de mulheres indígenas são comuns as histórias de meninas aliciadas para a exploração sexual. "Elas contam que as netas são violentadas em troca de lanternas, de óleo ou alimentação industrializadas. Eles compram essas jovens. Não são nem jovens, são crianças", diz.
O secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Ariel de Castro Alves, relatou que ao menos 30 adolescentes indígenas estariam grávidas de garimpeiros em território yanomami.
Ele, que esteve em Roraima para visitar a terra indígena e monitorar as violações aos direitos humanos, afirmou que a pasta deverá adaptar programas de proteção e acolhimento a crianças e adolescentes em oito municípios onde vivem yanomamis.
Luta política
Com o crescimento do garimpo ilegal, muitas indígenas se organizaram em associações e entidades políticas para dar visibilidade a causas que consideram emergenciais. "Tem mães que sofrem bastante quando não são atendidas em postos de saúde e, quando isso acontece, ajudamos elas entrando na Justiça", diz Alessandra, que passou a fazer parte do movimento de mulheres indígenas em 2015.
Segundo Marília, pesquisadora no território Yanomami, mulheres indígenas que atuam em causas políticas vem ganhando cada vez mais espaço e representação. "Nos fóruns, elas são as primeiras a levantar a preocupação com as crianças e com os filhos e estão buscando espaço para serem ouvidas."
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