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'Tive apagão': ela perdeu a perna no metrô e não sabe como isso aconteceu

Beatriz teve a perna amputada depois de uma acidente no metrô - Arquivo pessoal
Beatriz teve a perna amputada depois de uma acidente no metrô Imagem: Arquivo pessoal

Camila Corsini

Do UOL, em São Paulo

30/03/2023 04h00

Parecia ser uma manhã normal na vida da produtora de eventos Beatriz Rocha, de 25 anos. Algo, no entanto, saiu do controle. Beatriz embarcava no metrô de São Paulo, na manhã do dia 29 de agosto de 2021, e, sem saber como nem por que, foi parar embaixo do trem e teve a perna amputada.

Um ano e sete meses depois, o que houve naquele domingo ainda é um mistério para ela, que diz não se lembrar do momento exato em que caiu nos trilhos. O caso foi registrado como tentativa de suicídio —o que ela nega.

Beatriz diz que tinha planos de fazer intercâmbio e estava empolgada com treinos de Kung Fu. Ela agora tenta se adaptar à nova realidade e divide sua rotina nas redes sociais. Ao UOL, Beatriz conta sua história.

Antes do acidente

No sábado, dia 28 [de agosto de 2021], fui a Taboão da Serra, na Grande São Paulo, para entregar uma colação de grau porque sou produtora de formatura. Fiquei o dia lá, saí umas 20 horas.

Peguei o metrô para ir para casa e, no meio do caminho, me lembrei do aniversário de um amigo meu. Havia tido covid, minha quarentena tinha acabado na quarta-feira. Queria ver meus amigos.

Fui para a casa de um deles na zona leste, cheguei por volta das 23 horas. Não foi uma festa de arromba, um festão. Tinha eu, ele e mais uns seis amigos. Sempre fazemos isso: nos juntamos em casa para ficar conversando.

Eles beberam cerveja, mas como eu ainda estava com o paladar ruim [por consequência da covid], não quis beber nem comer

Para não dizer que não comi, só comi metade de um cachorro-quente. Como já cheguei lá tarde, resolvi passar a noite e voltar sozinha quando o metrô abrisse de manhã.

Por volta das 6 horas, peguei um carro de aplicativo até o metrô mais próximo. Só que a estação estava em manutenção e a companhia acionou a Operação Paese (quando são disponibilizados ônibus para circular no trajeto do metrô).

Achei que o ônibus me deixaria em uma estação que estivesse funcionando. Como no ponto seguinte muita gente desceu, fiz o mesmo. Mas o metrô ainda estava fechado.

Estava muito cansada e decidi pegar um novo carro de aplicativo, mas não achei motorista. Optei por um táxi comum, direto para casa. No meio da Radial Leste, a corrida já estava uma fortuna e vi que não tinha condições de pagar a corrida até em casa.

Desci em alguma estação da Linha Vermelha e precisava ir até a Sé para fazer baldeação para a Linha Azul, onde pegaria o trem sentido Jabaquara para ir para casa. Só me lembro de descer na estação [da Sé] e pegar a escada rolante.

O acidente

Acordei embaixo do carro [vagão] sem entender absolutamente nada do que estava acontecendo.

Eu tive um apagão. Estava de barriga para baixo, deitada em um lugar muito escuro e não conseguia enxergar nada, apenas uns feixes de luz que passavam pelo vão entre o trem e a plataforma.

Como estava toda de preto, imaginei que estava trabalhando. Só que não conseguia puxar na memória onde estava. Me veio na cabeça um dia em que saía da faculdade com uma amiga, na [estação] Ana Rosa, e ouvimos o barulho de alguém avisando que tinha usuário na via.

Mas eu já tinha terminado o curso havia alguns anos. E parecia que a usuária na via era eu. Não fazia sentido.

Comecei a ouvir uma pessoa me chamando e ela falou: 'Meu Deus, você está viva'. Senti uma onda de desespero imediata e tentei me levantar. Foi a pior dor da minha vida

Quando o resgate chegou, ainda não fazia ideia de que estava presa às ferragens. Queria perguntar que ano era e o que estava acontecendo, mas só consegui perguntar qual era o atual presidente do Brasil. Na hora, me arrependi. O cara acharia que estava maluca.

Um ano e sete meses depois do acidente, ela ainda tenta se adaptar à rotina - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Um ano e cinco meses depois do acidente, ela ainda tenta se adaptar à rotina
Imagem: Arquivo Pessoal

Ele respondeu para eu não tentar me levantar. Quando ele disse isso, a primeira coisa que eu fiz foi tentar me levantar. E desmaiei. Eu desmaiava e acordava de dor repetidas vezes, inclusive na ambulância. Lembro que o socorrista perguntou meu nome, idade e sobre a minha mãe.

Sinalizei que meu celular estava no bolso, ele pegou e passei a senha. Não sei quem entrou em contato com a minha mãe, mas a avisaram que eu tinha sofrido um acidente.

Quando cheguei à Santa Casa de São Paulo, a médica se surpreendeu com o meu estado. Perdi muito sangue. Eles fizeram um raio-x para ver se tinha mais lesões e logo fui para a sala de cirurgia. Saí de lá sem a perna esquerda.

A princípio, minha mãe teria de autorizar a remoção da minha perna, mas ela não chegou a tempo. Assinei com o carimbo da minha digital

Depois do acidente

Acordei uns dois dias depois da cirurgia e minha mãe estava comigo. A enfermeira disse: 'Você sofreu um acidente de metrô e teve de amputar a perna esquerda'. Tentei absorver a informação, mas minha mãe já estava chorando muito.

Minha primeira reação foi tentar ter um cuidado com ela, não pensei muito em mim.

Abracei minha mãe e falei que não sabia o que estava acontecendo. Ela disse que também não sabia e estava me esperando acordar para tentar entender

Só depois tirei o lençol para ver em que altura foi a amputação. Depois disso, foram duas semanas na Santa Casa me adaptando à minha nova condição.

Beatriz Rocha foi para a internet em busca de alguém que viu sua queda - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Beatriz Rocha foi para a internet em busca de alguém que viu sua queda
Imagem: Arquivo Pessoal

Depois soube que, quando minha mãe chegou ao hospital, ela foi notificada de que eu teria atentado contra a minha própria vida, mas a tentativa teria dado errado.

Uns meses depois, fui chamada para depor, já que o Metrô fez um boletim de ocorrência sobre o que aconteceu [o registro de acidentes é praxe nessas situações]. Eles também alegaram que eu estava sob efeito de álcool e drogas.

Ficamos alguns meses tentando as imagens do acidente, mas não conseguimos. Não tivemos acesso às câmeras da estação da Sé.

A única coisa que eu sei daquele dia é que eu não me lembro do que aconteceu. Não tem como eu saber o que pode ter acontecido... A única teoria, que na verdade é uma certeza, é que eu estava em um ambiente extremamente inseguro que não me protegeu de qualquer coisa que poderia ter deixado de acontecer comigo — o que acabou levando a amputação da minha perna.

Voltando à rotina

Não é porque uma pessoa é amputada que a vida acabou, mas a rotina precisa ser readaptada. Eu tinha um apego ao Kung Fu, era a única atividade física que gostava de fazer.

É uma retomada que eu não tive ainda, sinto muita saudade. Artes marciais exigem muito jogo de perna, e não consigo isso. A prótese me permite andar, mas não consigo praticar esporte ou subir escadas alternando as pernas, por exemplo.

Tive de entender que nem tudo seria como era antes, me readaptar e abrir mão de algumas coisas

Depois de amputada, as pessoas ficavam com medo de falar comigo. E percebi que uma forma de aproximá-las era rindo da situação. Fazer as coisas difíceis se transformarem em cotidiano.

Beatriz - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Beatriz Rocha, de 25 anos, não se lembra de acidente
Imagem: Arquivo Pessoal

Comecei a fazer piada, chamar a prótese de Alastor. Preferi ir por esse lado para normalizar a conversa e deixar as situações mais confortáveis.

O que aconteceu comigo é horrível, não é legal, não é fácil. Mas não sou 'coitadinha'

A princípio, fui para as redes sociais para falar da minha história na tentativa de achar alguém que estivesse lá no momento do acidente para me explicar o que aconteceu.

Mas vi que outras pessoas com membros amputados me enxergavam como um exemplo para reagir.

@bibsrocha Todo dia eu com trauma de metrô mas falando dele pra ver se vocês param de ser biruleibe e mantém os membros no lugar #pcd #amputada #segurança ? som original - Bibs Rocha

Desenvolvi um pânico de metrô muito grande. Não tenho memória nenhuma de ter sido pega pelo trem, mas tenho um medo geral. Não me sinto bem passando debaixo de alguma estação, olhando a entrada, me imaginando na situação de entrar em um trem.

Fora isso, passei muitos meses com medo de sair de casa e alguma coisa acontecer.

Entrei no metrô, o que fazia parte do meu cotidiano, e saí de lá sem a minha perna. Isso me deu a noção de que qualquer coisa pode acontecer comigo. Tem momentos em que paro e penso: não é possível que isso está acontecendo

Processo na Justiça

Beatriz entrou com um processo contra a Companhia do Metropolitano de São Paulo e está sendo representada por uma advogada especialista em responsabilidade civil.

A advogada conta que só pegou o caso depois de encaminhar Beatriz a uma psicóloga independente, que atestou não haver traços de desequilíbrio emocional. A defesa também argumenta que não foi feito exame toxicológico em Beatriz.

O processo corre em segredo de justiça.

Por meio de nota, o Metrô afirmou que presta todos os esclarecimentos no Judiciário e que "o fornecimento de imagens ocorre dentro do processo".

Procurada, a SSP (Secretaria de Segurança Pública) disse que o caso foi investigado como tentativa de suicídio por meio de um inquérito policial instaurado pela Delegacia do Metropolitano (Delpom) e relatado à Justiça em janeiro de 2022, sendo arquivado pelo juiz no mesmo mês.