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'Foi um trago, e minha vida mudou': quem usa K9 narra piripaque devastador

Do UOL, em São Paulo

30/03/2023 04h00

Foi um trago, e a minha vida mudou. K9 não é brincadeira, não. Os 'cara' fala que é maconha, mas não é. Os parceiros tudo babando, morando na rua. Fiquei magrelão, não comia, vomitava todos os dias e não tinha nada na barriga".

É assim que um jovem de 17 anos, morador de Guarulhos (SP), começa a descrever o que sentiu desde que experimentou pela primeira vez a chamada maconha sintética —que agora tenta abandonar.

"Vou te falar: tem que ser muito forte para conseguir parar de usar essa droga. Eu tentei me matar, tinha alucinação. Parecia que um espírito da morte queria me pegar. E quando a brisa passava, eu estava todo machucado e cortado", diz.

A 'brisa' dura cerca de 10 minutos e é suficiente para viciar, explica Cléber (preservamos o sobrenome), de 22 anos, ao UOL.

"Dei dois tragos. Meu primo tirou o baseado da minha mão e disse que já estava bom. Falei que não tinha sentido nada, mas, passados alguns segundos, comecei a sentir como se tivesse uma tonelada nas minhas costas. Suava, meu coração batia forte, faltava o ar, senti tontura. Pareciam 20 infartos."

Ele explica as consequências da nova droga no corpo, o que os usuários apelidaram de 'Efeito zumbi' ou o 'Piripaque do Chaves'.

A sensação era de euforia, mas não conseguia andar ou ter controle do meu corpo, dos braços ou das pernas. Fiquei desgovernado, me jogando de um lado para o outro. A brisa não é gostosa, dura 10 minutos e já vicia. Ou você morre dormindo... ou morre sem conseguir pedir ajuda."

Vendida como K2, K4, ou K9, a "supermaconha" ou "maconha sintética" tem nada de maconha e muito de droga sintética.

Criada em laboratórios improvisados para imitar os efeitos de um baseado no cérebro, a droga é uma mistura de substâncias químicas com solvente, que é borrifada em cigarros, ervas, papéis e até em outras drogas. Nos presídios, chegou nos selos e no papel sulfite (K4).

O efeito que tem chamado a atenção de quem usa é taquicardia, junto com a sensação de infarto. Foi de parada cardíaca que uma criança de 12 anos morreu em fevereiro, quando usava K2 em Diadema, na Grande São Paulo.

K9 - Tommaso Protti/UOL - Tommaso Protti/UOL
Na Sé, região central de São Paulo, crianças são vistas usando maconha sintética
Imagem: Tommaso Protti/UOL

4h, fila na biqueira

Cléber também se surpreendeu com o poder viciante da "K". Assim que o efeito passa, explica, o ponto de encontro dos usuários de drogas nas ruas cresce rapidamente:

A gente sabe que está se matando e, mesmo assim, não consegue parar. Meu corpo pedia, mas não era só comigo. Parecia um encontro na loja. Chegava às 4h na biqueira e já tinha uma fila de gente procurando. Os que tinham dinheiro para sustentar o vício, e os que não tinham."

A dependência fez o jovem, que trabalha como barbeiro, vender as panelas de casa e revirar lixo atrás de recicláveis para ter algum dinheiro. Fumava R$ 150 de K2 pela manhã, cerca de 30 baseados.

K9PINO - Tommaso Protti/UOL - Tommaso Protti/UOL
O pino da K9, que tem erva dentro, faz parte do "kit biqueira" junto do crack, cocaína, maconha e lança-perfume
Imagem: Tommaso Protti/UOL

Não à toa, a K2 ganhou esse nome em alusão à segunda montanha mais alta do mundo depois do Everest. K4, K9 e K12 também fazem referência a outros picos altos e desafiadores. O PCC (Primeiro Comando da Capital) passou a chamá-la de "spice".

'Ela te desmaia'

O 'barato' provocado pelos canabinoides sintéticos é característico e considerado 100 vezes mais forte do que o da maconha.

Usuário - Tommaso Protti/UOL - Tommaso Protti/UOL
Após os primeiros tragos, usuários desmoronam pelos cantos
Imagem: Tommaso Protti/UOL

As substâncias sintéticas agem no mesmo receptor do THC (substância psicoativa da maconha) e afetam tanto o sistema nervoso central quanto o sistema nervoso periférico, explica Maurício Yonamine, professor do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.

O efeito é intenso e causa:

  • alucinações auditivas e visuais,
  • agitação, ansiedade, hipertensão,
  • infarto agudo do miocárdio,
  • convulsões,
  • paralisia,
  • psicose, depressão e ideação suicida, incluindo morte.

Em alguns momentos me sentia bem, disposto; em outros, queria me esconder. Ela mexe com o emocional, dá depressão. Quem usa não consegue dormir uma noite completa. Eu fumava dois baseados antes de dormir, mas, na real, ela te desmaia. E, quando você acorda, o corpo pede mais."
Cléber, que diz que parou de consumir K2 em fevereiro

Em busca de uma saída, o barbeiro deixou Guarulhos e mudou de país. Hoje, usa o TikTok para alertar para a "cilada" que é experimentar a droga "pior que crack" que é propagandeada como um baseado mais forte.

droga - Tommaso Protti/UOL - Tommaso Protti/UOL
Basta um olhar mais atento para ver os usuários caídos pelas ruas da cidade
Imagem: Tommaso Protti/UOL

Mais apreensões e internações

No Brasil, a maconha sintética chegou por volta de 2018, mas espalhou-se nos últimos anos da pandemia. O crescimento nas apreensões do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) foi de 600%, segundo dados de 2022.

k - Reprodução - Reprodução
Droga K em formato de papel apreendida pela Polícia Civil de SP
Imagem: Reprodução

Naquele ano, agentes do Denarc (Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico) apreenderam 12 kg de drogas "K" na capital e na região metropolitana de São Paulo. Até fins de março deste ano, já foram apreendidos 15 kg.

É um número alto, considerando que uma folha de tamanho A4 pesa 10 g e rende 1.200 "selos" (doses da droga).

Fontes da SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) disseram a TAB que estão tratando a "K" como prioridade —e até o PCC decidiu proibir a droga na "cracolândia", no centro da capital paulista, porque ela chama a atenção das autoridades, causa mortes rapidamente e prejudica os negócios.

O delegado Jair Ortiz, titular da 1ª Delegacia Seccional de São Paulo, resume sua apreensão com o que vê nas ruas. A droga K, diz ele, "cozinha o cérebro". "O usuário vira um zumbi."

K - UOL - UOL
Nomenclatura variável
Imagem: UOL

Com informações de Bruna Ribeiro Cardoso, farmacêutica da CiaTox (Toxicológica do Centro de Informação e Assistência Toxicológica do HC - Hospital das Clínicas FMUSP), Alexandre Soares, diretor do Núcleo de Exames de Entorpecentes do Instituto de Criminalística, e Maurício Yonamine, professor do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.