SC ignorou tentativa de homicídio de agressor de creche contra padrasto
A Polícia Civil de Santa Catarina não investigou uma tentativa de assassinato cometida pelo autor do ataque à creche de Blumenau contra o padrasto em 2021.
O que aconteceu
O motoboy de 25 anos tentou matar o padrasto há dois anos com três facadas.
O caso foi registrado pela polícia apenas como "lesão corporal leve". Isso ocorreu mesmo com a vítima sofrendo lesões graves por causa das perfurações no pescoço, abdômen e braço.
Especialistas consultados pelo UOL dizem que isso foi determinante para que o crime não tenha sido investigado. Como lesão corporal é um crime de menor gravidade em comparação com tentativa de homicídio, a vítima nem sequer foi ouvida, e o agressor que depois viria a atacar a creche não foi submetido a um julgamento do Estado.
A tentativa de assassinato foi registrada em boletim feito pela PM, sem que Polícia Civil e perícia tenham sido acionadas. A informação consta na ocorrência do caso.
"A lesão da vítima foi apenas superficial", citou o registro. A informação foi atribuída aos socorristas que levaram o padrasto do agressor ao hospital. O motoboy foi preso preventivamente pelo assassinato de quatro crianças e por ter ferido outras cinco.
A Polícia Civil disse que o padrasto não foi ao IML, impossibilitando a constatação da gravidade das lesões. Informou ainda que a vítima não quis representar criminalmente contra o agressor.
O cara tentou me matar a facadas, mas o caso foi registrado como "lesão corporal leve". Era para ele ter sido preso. Mas, para a polícia, foi um corte superficial, só um arranhãozinho. Foi humilhante, me senti um zé ninguém
Padrasto em entrevista ao UOL
O que disse o padrasto
O motorista de aplicativo de 56 anos disse ter ficado com sequelas após as agressões. Ele relatou ter o lado direito do corpo enrijecido em decorrência da facada no pescoço e ter tido um dos rins atingido no ataque. Depois do caso, a vítima se separou da mãe do agressor.
O homem relatou que só ficou sabendo como o caso havia sido registrado na terça-feira (11), quando disse ter prestado depoimento à Polícia Civil pela primeira vez. Ele contou só ter sido procurado pelas forças de segurança após o ataque à creche.
O padrasto declarou que passou a ser perseguido após a tentativa de assassinato. Em dezembro de 2022, ele registrou uma ocorrência acusando o agressor de ter arrombado o portão da sua casa e esfaqueado o cão da família.
Após ter a sua casa invadida, a vítima afirmou ter solicitado medida protetiva aos policiais que atenderam a ocorrência. Como não foi atendido, ele contou que se mudou de Blumenau para outra cidade do interior catarinense com medo de ser morto.
Pedi medida protetiva contra ele, mas um policial me falou que isso era só para mulheres vítimas de violência. Como não fui atendido, minha solução foi fugir, porque tinha medo de ser assassinado. Abandonei emprego, família e fui para outra cidade
Padrasto
O padrasto disse ter encaminhado à Polícia Civil de Santa Catarina vídeos do agressor rondando o local onde ele morava de moto. O UOL teve acesso ao conteúdo, mas não irá divulgá-lo.
Ele também informou ter repassado imagens do portão depredado e do cão ferido após ter sido esfaqueado.
O que disse a Polícia Civil
O padrasto não quis levar a investigação adiante porque o agressor seria internado em uma clínica de reabilitação para dependentes químicos. O relato foi dado pela vítima em depoimento registrado na última terça-feira (11) na delegacia de Blumenau.
"Ele iria se internar em uma clínica de desintoxicação de drogas (...). Por isso, não quis representar contra ele". A declaração consta no depoimento do padrasto, ao qual o UOL teve acesso.
A Polícia Civil dará uma entrevista sobre a conclusão do inquérito na próxima segunda-feira (17). A coletiva ocorrerá na capital Florianópolis e será transmitida pelo canal do YouTube do governo estadual.
O padrasto sequer compareceu ao IML para realizar o exame de corpo de delito, o que constataria o grau da lesão. Ele foi à delegacia dizendo que não queria representar criminalmente [contra o agressor]. A Polícia Civil de Santa Catarina agiu dentro da legalidade, cumprindo todas as formalidades legais
Ulisses Gabriel, delegado-geral da Polícia Civil de SC
O que dizem os especialistas
A Polícia Civil e a perícia deveriam ter sido acionadas quando o ataque aconteceu. Mas o registro foi feito exclusivamente pela PM com base em um relato dos socorristas para constatar "lesão corporal leve".
Testemunhas deveriam ter sido acionadas. As autoridades também deveriam procurar por câmeras de segurança no entorno, o que não ocorreu.
A polícia deveria ter solicitado os prontuários médicos da vítima. Em seguida, o conteúdo precisaria ser encaminhado ao IML. As medidas seriam determinantes para apurar a gravidade do ataque.
Há uma série de equívocos. Não teve perícia, as pessoas não foram ouvidas para depor e não foi dada sequência ao inquérito. Só assim o suspeito poderia responder criminalmente. O Estado foi omisso. Com isso, sujeitou a sociedade a um risco de acontecimentos como o da creche
Cássio Thyone Rosa, perito criminal aposentado e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Se não houve investigação, a Polícia Civil falhou no cumprimento do seu trabalho. A vítima foi atendida no hospital. Então, o delegado deveria ter solicitado os prontuários do atendimento médico e enviar ao IML para qualificar a gravidade das lesões
Yuri Sahione, advogado criminalista
Houve falha no monitoramento e na responsabilização do agressor. O ataque ao padrasto foi colocado na vala comum das ocorrências que temos diariamente em todo o país. A Polícia Civil tem dificuldade de dar sequência aos registros criminais por dificuldades estruturais em meio ao grande volume de registros
David Marques, sociólogo e coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Era dever da PM comunicar o fato formalmente à Polícia Civil para que essas providências fossem tomadas. A partir daí, seria possível conhecer o contexto e avaliar se o caso deveria ser tratado como lesão corporal ou tentativa de homicídio
Thiago Bottino, criminalista e professor de Direito da FGV-Rio
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