'Conheci o jogo por um influencer': jovens lutam contra o vício em apostas

O aumento do número de sites de apostas online tem apresentado um efeito colateral: apostadores cada vez mais jovens estão procurando ajuda para tratar a compulsão por jogos.

O que aconteceu

Grupo J.A. (Jogadores Anônimos) reúne pessoas que contam os problemas ocasionados pelas apostas. O UOL esteve em um encontro virtual, com cerca de 60 participantes de diversas regiões do Brasil, e ouviu histórias de jogadores que perderam contato com familiares, assumiram grandes dívidas e até pensaram em suicídio.

"Conheci [o jogo] por um influencer", diz um deles. "Com todos esses influenciadores é difícil manter a distância", comenta outro.

O perfil mais frequente em apostas online é jovem e masculino. Segundo o Datafolha, 30% dos jovens de 16 a 24 anos e 25% das pessoas entre 25 e 34 anos relataram já ter feito alguma aposta pela Internet.

15% de toda a população diz ter apostado pelo menos uma vez. A média de gastos do brasileiro com esse tipo de atividade corresponde a 20% do salário mínimo.

Perdi o contato com meu filho por causa disso. Parei de pagar pensão e assumi dívida com agiota, que me cobra até hoje. Me vi numa situação que era melhor me matar e tentei suicídio.
R., 27 anos, em depoimento ao grupo

R. enviou o filho, de 8 anos, para morar com parentes em outro estado por conta do seu vício. Ele conta que, "quando aceitou que era fraco perante o jogo, tudo mudou" e passou a frequentar o J.A..

Diariamente, de duas a três pessoas procuram ajuda do J.A. por vício em jogo —a ludopatia. Segundo o grupo sem fins lucrativos, com a expansão dos sites de apostas online, o número de jogadores que enfrentam o vício também cresceu.

Houve uma explosão no número de pessoas com problemas com jogo. Já aconteceu até de menores de idade, de forma isolada, procurarem o grupo.
Grupo J.A. (Jogadores Anônimos)

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Média de idade inferior a 35 anos

Pessoas cada vez mais jovens estão procurando tratamentos. A média está agora abaixo de 35 anos; antes passava dos 40. Isso se deve principalmente às bets, as apostas fáceis na Internet.
Hermano Tavares, psiquiatra especializado em Transtorno do Jogo

Eu acredito que o número de casas de apostas na internet influencia muito. Os jogos de maquininha e bingo geralmente atingem outro tipo de jogadores, mais velhos. Agora está vindo uma nova onda, esses jogadores mais jovens que têm mais contato com o meio digital, a internet.
Rachel Takahashi, psiquiatra do IPq

Os relatos anônimos no grupo de ajuda

"Difícil não é parar, mas manter a abstinência". Entre a maioria dos depoimentos, um padrão se repetiu: quem estava ali diz que se perdeu graças à facilidade oferecida pelas apostas online, atraído por famosos da internet.

T., 35 anos, conta que perdeu emprego, se afastou dos filhos e teve que morar de favor após viciar na 'roletinha' online. "Sigo alguns influencers, e vi uma influenciadora fazendo propaganda. Eu fiz aposta online movida por uma necessidade financeira. Achava que seria tranquilo, várias promessas de ganhos altos... E depois que vi os influencers, falei: 'cara, é uma oportunidade'."

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Jogadores com mais idade (em relação à média registrada) também são atraídos.

Durante a época da pandemia, como não tinha nada para fazer, eu jogava online. Antes eu jogava fisicamente. O que eu perdia, mil reais durante a semana, multiplicou. Perdi 10 mil, 15 mil, 20 mil numa semana, sempre tentando recuperar e perdendo mais. Perdi loja, perdi carro, muito dinheiro... Mais de R$ 40 mil ou R$ 50 mil.
W., 40 anos

Para a irmandade, cada história é única. Na reunião do J.A. — que durou duas horas e meia, numa noite de terça-feira — códigos e formalidades são importantes para lembrar a particularidade de cada caso. Uma breve apresentação, uma oração da serenidade e instruções de como se posicionar marcaram o encontro: "O segredo está sempre na próxima reunião".

Perdi todos os meus amigos. Até minha namorada se afastou de mim, devido ao descontrole. Depois que decidi entrar para o J.A., nossa relação melhorou. Hoje o meu dinheiro fica com ela.
L., 28 anos

No encontro, jovens com menos de 30 anos foram os que relataram maior dificuldade e vergonha em pedir ajuda. Com agradecimentos a padrinhos e madrinhas —pessoas próximas que incentivam mais pessoas a procurar auxílio—, os participantes se sentem acolhidos na roda virtual. Nesse ambiente não há julgamento. Todo mundo ali já enfrentou problemas por conta de apostas.

Trabalho com confeitaria, e todo o dinheiro que tinha acabava gastando. Quando não tinha mais, ia para os cartões de crédito, estourei todos. Aí ia atrás de dinheiro emprestado. Devo até hoje. E como eu ia contar isso para alguém? E a vergonha?
H., 24 anos

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"Só por hoje, mais 24h". O lema do J.A. indica como deve ser o tratamento para o transtorno. Especialistas, consultados pelo UOL, explicam que o processo é semelhante ao trabalho feito com dependentes químicos. É preciso buscar psicoterapia e fortalecer laços em grupo, com pessoas que passaram pelas mesmas dores.

Compulsão é doença, diz psiquiatra

A compulsão por jogo é considerada uma doença. De acordo com Hermano Tavares, coordenador do Programa Ambulatorial do Transtorno do Jogo do IPq (Instituto de Psiquiatria) do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), o viciado acaba perdendo o controle da vida, prejudicando suas relações sociais, o trabalho e a saúde.

Você tem de estabelecer uma ética de publicidades das apostas. Tem influencers dizendo que o jogo é complemento de renda. Não é.

Jogo, na melhor das hipóteses, é uma diversão, e você paga para isso. Eventualmente, você tem um retorno. Mas o mais provável é você perder dinheiro.
Hermano Tavares, psiquiatra especializado em Transtorno do Jogo

Membros do J.A. (no grupo, chamados de irmãos) e psiquiatras explicam que a presença da família é essencial. Segundo eles, estar sozinho dificulta ainda mais o processo. Familiares também podem participar das reuniões.

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Os especialistas em Transtorno do Jogo sugerem que mais recursos sejam direcionados ao SUS para tratar as pessoas com o transtorno. Com a Lei 4.790/2023, há a expetativa de arrecadação na casa dos R$ 12 bilhões aos cofres públicos. Desse total, 1% deve ser direcionado ao Ministério da Saúde.

Tavares comenta que o dinheiro deve ser conduzido para criação de um setor específico para o problema do jogo.

O SUS tem o Caps (Centro de Atenção Psicossocial), que tem subtipos: geral, infantil, álcool e drogas... Deveria ter um Caps ADJO: Álcool, Drogas, Jogos e outros. Se vai legalizar mesmo e favorecer ainda mais o acesso, então precisa muito mais dessa renda para investir no Ministério da Saúde para a capacitação da atenção primária a saúde, na rede pública.
Hermano Tavares, psiquiatra especializado em Transtorno do Jogo

A gente tem serviços como no IPq, mas não tem estrutura no SUS para receber essas pessoas. O sistema não tem a expertise. Precisaria de um serviço especializado.
Psiquiatra Rachel Takahashi, psiquiatra do IPq

O que dizem os órgãos públicos de saúde

O Ministério da Saúde explica que, por se tratar de um problema atual, ainda não há dados precisos sobre o aumento do número de pessoas buscando ajuda na rede pública. No entanto, por ser uma questão de saúde mental, o SUS recepciona casos através da Rede de Atenção Psicossocial (Raps).

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O tratamento para dependência em jogos de azar não tem uma política específica no âmbito do SUS. No entanto, essa questão pode ser abordada no contexto mais amplo da saúde mental, uma vez que o referido hábito pode estar relacionado a causas como compulsões e depressão, por exemplo. Como o hábito pode estar ligado a outras condições de saúde mental, não é possível calcular o número de pessoas tratadas exclusivamente por esse motivo.
Ministério da Saúde

A secretaria Municipal de Saúde de São Paulo informa que não faz registro desses casos, pois geralmente os pacientes com Transtorno de Jogo também carregam sintomas de outras doenças, como depressão e ansiedade. Com isso, a pessoa não é catalogada numa ficha para a compulsão, e sim para outras comorbidades. Já Secretaria de Saúde de SP disse que os casos que chegam são registrados na rede municipal, através da atenção básica.

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