Marielle: Morte seria paga com terreno em zona de tráfico e milícia, diz PF
O pagamento pelo assassinato da vereadora Marielle Franco seria feito ao PM Ronnie Lessa, pelos irmãos Brazão, com terrenos de uma área disputada por tráfico e milícia, na zona oeste do Rio, entre Praça Seca e Vila Valqueire. Juntos, os dois bairros registraram 69 tiroteios por controle de território desde 2017, de acordo com o aplicativo Fogo Cruzado.
O que aconteceu
Áreas prometidas pelos Brazão ficam perto das estradas da Chácara e Comandante Luís Souto. Até hoje não ocupadas, elas estão em uma região de mata, entre a estrada do Catonho (à leste), a favela da Chacrinha (ao sul), o bairro de Vila Valqueire (ao norte) e a Cândido Benício (a oeste), principal rua do bairro da Praça Seca.
Os terrenos já pertenceram à Cia Territorial Jacarepaguá S/A, uma empresa hoje falida. Além disso, ficam em uma área de proteção ambiental. De acordo com a Polícia Federal, os dois fatores contribuíam para que ninguém reclamasse a posse do local — o que facilitaria a invasão e grilagem daquele espaço.
Locais seriam invadidos em "empreitada milionária", segundo Lessa. Na sua delação premiada, o PM disse que a proposta dos Brazão previa que, após a invasão, ficaria a cargo dele não só a venda dos terrenos na região como a comercialização de "gatonet", gás e outros serviços tipicamente explorados clandestinamente por milícias.
Um miliciano de Rio das Pedras implementaria infraestrutura e urbanização da área, de acordo com Lessa. Também PM, o major Ronald Pereira foi preso em janeiro de 2019 na Operação Intocáveis, do Ministério Público do Estado do Rio. Dois anos depois, ele foi condenado a 17 anos de prisão por organização criminosa
Irmãos Brazão negam envolvimento com a morte de Marielle. O advogado Ubiratan Guedes, que representa Domingos, disse que tem "certeza que ele é inocente". "Ele não tem ligação com a Marielle, não a conhecia". Já Chiquinho disse que foi "surpreendido" com a prisão determinada pelo Supremo Tribunal Federal.
Lessa diz que irmãos Brazão queriam curral eleitoral
Irmãos contavam que, sob controle de Lessa, a área se tornaria fonte de votos para eles. Segundo a Polícia Federal, os irmãos são donos de um haras abandonado na região e apostavam que o contato do PM com colegas os ajudaria a obter muitos eleitores ali, como já acontece em locais como Muzema e Tijuquinha.
"Lessa desejava ter uma área para chamar de sua e explorá-la economicamente sem ter que abaixar a cabeça para outras lideranças", afirma PF em relatório. O PM obtinha "uma boa renda" com aluguel de máquinas de música e exploração de serviços em favelas, mas desejava ter um local sob seu controle.
PM foi expulso de Rio das Pedras por capitão Adriano da Nóbrega, segundo a Polícia Federal. Lessa era dono da Academia Supernova, que funcionava na comunidade da zona oeste. Mas, por não fazer parte da milícia que controla a região, foi forçado a vender o negócio para Nóbrega por "um preço irrisório".
O local prometido pelos irmãos Brazão a Lessa está numa região limítrofe, entre as zonas oeste e norte. Nos últimos 20 anos, a zona oeste serviu de berço e principal área de expansão das milícias. Já a zona norte concentra as comunidades controladas pelo Comando Vermelho e outras facções ligadas ao tráfico de drogas.
Favelas da Praça Seca são controladas por diferentes quadrilhas. Em setembro de 2022, por exemplo, o Mapa Histórico dos Grupos Armados no Rio de Janeiro (produzido pela Universidade Federal Fluminense, a UFF) apontava que 20 localidades do bairro eram dominadas por milícias e outras seis, pelo Comando Vermelho.
Bairro tem posição estratégica
Praça Seca é um dos locais com mais conflitos na cidade hoje, diz especialista. Segundo Daniel Hirata, coordenador do Geni (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos) na UFF, as disputas entre tráfico e milícia no bairro geram "uma alternância no controle territorial que é muito alta".
Essa lógica das conquistas territoriais passa muito pela logística dos chamados bondes. São caravanas que envolvem traficantes ou milicianos que seguem juntos para a guerra, para esses conflitos. Essa lógica exige contiguidade territorial, passagens entre áreas controladas por donos de morro, amigos ou por milicianos aliados desses grupos. Portanto, em uma área limiar, de fronteira, isso tende a aumentar o número de conflitos
Daniel Hirata, professor do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais e coordenador do Geni na UFF
Região viveu explosão de confrontos por território em 2021. Segundo o Fogo Cruzado, o número de confrontos na área de Praça Seca e Valqueire saltou de quatro, em 2020, para 26, no ano seguinte. Entre janeiro e novembro, dois morros da região —Barão e São José Operário— registraram juntos 22 tiroteios do tipo.
Números mais recentes indicam queda nas disputas por comunidades. Em 2022, o Fogo Cruzado contabilizou sete confrontos do tipo na área de Praça Seca e Valqueire. Já em 2023, foram 11 —dez deles, na favela da Chacrinha. Há registro ainda de um tiroteio por disputa territorial no morro São José Operário em 25 de janeiro de 2024.
Fogo Cruzado reúne dados enviados por usuários via celular. Após receber os alertas por meio do app, a plataforma checa as informações antes de divulgá-las. Ainda não há números consolidados em relação a fevereiro e março de 2023, mas não houve mudanças significativas no cenário em relação ao primeiro mês do ano.
Em 2023, a zona oeste se tornou a área da região metropolitana com maior número de tiroteios por disputa de território. De 174 registros, 76 se deram na região —22 deles, só na região de Bangu e Santa Cruz. O número foi maior do que os 69 casos verificados da zona norte que, desde 2019, liderava o ranking.
A Polícia Civil do Rio afirma que "desconhece a metodologia utilizada para a confecção do levantamento" pelo Fogo Cruzado. O órgão informa ainda que "investiga a atuação de grupos armados envolvidos em tiroteios na zona oeste e em outras regiões".
Já a Polícia Militar confirma "diversos confrontos entre grupos criminosos" ao longo de 2023. A corporação afirma que atuou nesses casos, com o objetivo de "devolver a sensação de segurança aos moradores dessas áreas".
Somente no ano de 2023, a corporação prendeu mais de 32.600 criminosos, apreendeu mais de 4.200 adolescentes envolvidos com a criminalidade e retirou das ruas mais de 5.800 armas de fogo, entre mais de 492 fuzis idênticos aos utilizados em guerras convencionais.
Polícia Militar do Rio, em nota