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'Parece comida que nem porco come', dizem vítimas da chuva em abrigo no RS

"Parece comida que nem porco come. Gelada e azeda." A avaliação é de quem entende do assunto. Carolina Freitas, 30, trabalhava como auxiliar de cozinha. Hoje, é uma das 6.500 pessoas que estão alojadas no abrigo que mais recebeu pessoas atingidas pelas enchentes do Rio Grande do Sul, na Ulbra (Universidade Luterana do Brasil), em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre.

O UOL teve permissão de entrar em um dos ginásios do abrigo por 30 minutos na tarde desta segunda-feira (20). Somente nesse período, além da auxiliar de cozinha, outras quatro pessoas que estão no abrigo aberto pela universidade reclamaram da qualidade da comida servida no local. Duas delas afirmaram que seus filhos passaram mal após consumir alimentos levados até eles.

A Ulbra serve quatro refeições diariamente a quem está no abrigo: café da manhã (das 8h às 9h), almoço (das 12h às 13h30), lanche da tarde (das 16 às 17h) e jantar (das 21h às 22h30). Ao todo, o campus de Canoas da Ulbra chegou a abrigar mais de 8.000 pessoas desalojadas e desabrigadas ao mesmo tempo no último mês.

Por meio de nota, a Ulbra afirmou que "problemas pontuais existem e são sanados tão logo chegam ao conhecimento da instituição, que não tem medido esforços para acolher a comunidade de Canoas e arredores que busca na instituição um refúgio seguro neste momento de tragédia e dor".

"Quando é na hora do almoço, vai ver um monte de gente jogando [a comida] fora. E eles [que servem os alimentos] falam assim: 'ah, se não tá gostando, pega e vai embora'. Como é que a gente vai embora se não temos mais casa? Senão a gente não estaria aqui", disse Carolina Freitas, que dorme no abrigo desde o início de maio com o marido e três filhas.

20.mai.2024 - Carolina Freitas, uma das abrigadas na Ulbra, em Canoas
20.mai.2024 - Carolina Freitas, uma das abrigadas na Ulbra, em Canoas Imagem: Marcelo Ferraz/UOL

A gente tinha casa, a gente não era morador de rua.
Carolina Freitas

Um rapaz que está abrigado na universidade, mas pediu para não ser identificado por atuar como um dos voluntários na cozinha do mesmo local, afirmou que realizou um teste ao estranhar a qualidade da comida após dias seguidos. Ele fez marcas com caneta azul na parte de baixo do isopor de 24 marmitas servidas no almoço. O rapaz disse que 22 delas foram reutilizadas para o jantar.

Tem gente que tá saindo daqui e indo pra casa de amigo ou voltando pra casa, nas águas. Porque não aguenta ficar aqui. Eu só não saio daqui agora porque eu não tenho para onde ir. Ninguém merece estar passando por isso aqui depois de tudo o que a gente passou. A gente perdeu tudo, eu perdi amigo na água.
Alojado no abrigo da Ulbra, em Canoas

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O operador de produção Jackson Train, 23, chegou até o abrigo após duas horas e meia de caminhada com a mulher e o filho, de 1 ano, no colo. "Se não vem estragada, ela vem gelada. Desde o dia que a gente está aqui. E eu já tô aqui há duas semanas", disse.

20.mai.2024 - Jackson Train está no maior abrigo do RS com a mulher e seu filho de 1 ano
20.mai.2024 - Jackson Train está no maior abrigo do RS com a mulher e seu filho de 1 ano Imagem: Marcelo Ferraz/UOL

Segundo Train, na tarde de domingo (19), ocorreu uma confusão dentro do abrigo enquanto era servido o café: "por causa da comida. Tinha gente passando mal."

Mãe de três filhos, Sônia Ramos, 40, foi uma das primeiras a chegar no abrigo. "Aqui, ninguém tá comendo. É tudo estragado, azedo. Eu já até passei mal. A minha guria, eu levei ela no médico, ela tá tomando um monte de remédio", afirmou.

Eu tô comendo um pão, porque o pão acho que dá pra comer. E um cafezinho com leite. Comer essa comida não dá pra comer. Eles trazem azedo, gente.
Sônia Ramos

20.mai.2024 - Sônia Ramos está no abrigo da Ulbra, em Canoas, com três filhos
20.mai.2024 - Sônia Ramos está no abrigo da Ulbra, em Canoas, com três filhos Imagem: Marcelo Ferraz/UOL

Outro jovem, de 21 anos, que também está no abrigo, afirmou que ele, a família e os amigos decidiram, há alguns dias, evitar comer o que é servido no abrigo. "Já jogamos fora pra nem devolver pra eles, pra eles não devolverem pra outras pessoas também", afirmou.

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Esse jovem disse que é de entendimento dos que estão dormindo ali que a culpa não é das pessoas que estão realizando doações: "As pessoas que estão mandando fazem de coração, para ajudar. Mas em vez de distribuir, pra deixar as pessoas comerem, eles querem guardar a comida para dar no outro dia para não faltar todos os dias."

Carolina Freitas disse que há dias que são servidos "revirados", "quando bota um monte de coisa misturada. Em cima, bom; embaixo, horrível".

20.mai.2024 - Homem abrigado na Ultra, em Canoas, após enchentes no Rio Grande do Sul
20.mai.2024 - Homem abrigado na Ultra, em Canoas, após enchentes no Rio Grande do Sul Imagem: Marcelo Ferraz/UOL

30 mil refeições diárias

Por meio de nota, a Ulbra afirmou à reportagem que faz um trabalho voluntário de acolhimento a essas pessoas desde o dia 3 de maio. "São oferecidas quatro refeições diárias, totalizando cerca de 30 mil refeições, todas elas enviadas por voluntários e empresas parceiras e distribuídas pela Ulbra", disse.

A Prefeitura de Canoas expressou surpresa e disse que nenhuma reclamação sobre a qualidade da comida servida chegou à administração municipal: "A Prefeitura de Canoas, a Ulbra e todos os órgãos oficiais de fiscalização trabalham em conjunto para garantir o melhor serviço e acolhimento aos abrigados, com estrutura, alimentação e atendimento adequados."

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"Reforçamos que o local está passando por uma desmobilização espontânea, de pessoas que saíram para casa de familiares, para outras cidades ou que já retornaram para suas casas. Além disso, a Prefeitura está realizando um acolhimento social, direcionando essas pessoas para outros abrigos institucionais. A Ulbra chegou a registrar quase 8 mil abrigados, mas hoje esse número é de pouco mais de 3 mil pessoas", diz a nota da prefeitura.

A reportagem apurou que a alguns dos fornecedores de alimentação já sinalizaram que devem deixar de fazer doações de alimentos em breve, requerendo que o poder público se responsabilize pela comida ofertada.

A instituição afirmou, também, que "distribui água potável, produtos de higiene pessoal, roupas, colchões, agasalhos, cobertores e fraldas, entre outros produtos, além de disponibilizar, com a ajuda dos órgãos públicos, entidades, estudantes e professores, médicos e enfermeiros 24 horas, ambulância, medicamentos e segurança pública".

20.mai.2024 - Caminhão com doações de roupas chega ao maior abrigo do Rio Grande do Sul
20.mai.2024 - Caminhão com doações de roupas chega ao maior abrigo do Rio Grande do Sul Imagem: Marcelo Ferraz/UOL

Além disso, no local estão disponíveis para as vítimas das enchentes assistência jurídica para a confecção de documentos, amparo psicológico e cuidado com idosos, enfermos e crianças.

"A Ulbra também acolheu neste período mais de mil animais, entre cães, gatos e equinos, que foram tratados no Hospital Veterinário da Ulbra, entre eles o animal que se tornou símbolo da resiliência do povo gaúcho diante desta tragédia, o cavalo Caramelo", relatou.

Três campi da Ulbra tiveram suas rotinas alteradas com as enchentes do Rio Grande do Sul. Além do campus de Canoas, em Guaíba e São Jerônimo, as aulas retornaram nesta segunda-feira, mas de maneira remota.

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Leia a nota enviada pela Ulbra

A Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) acolheu de maneira voluntária em seu campus, em Canoas (RS), mais de 8 mil pessoas que perderam suas casas e todos os seus pertences em função da catástrofe climática que assolou os gaúchos, transformando-se no maior abrigo do Rio Grande do Sul e um dos maiores que se tem notícia na história do Brasil. Diante deste cenário, é papel constitucional do poder público abrigar e alimentar esses milhares de desabrigados, e não de uma entidade privada. A Ulbra acolheu essas famílias em nome da solidariedade com o povo gaúcho. Mas, reiteramos, é do Estado a responsabilidade de garantir a alimentação dessas pessoas neste momento de dificuldades. Diante da impossibilidade de o poder público garantir essa assistência, a Ulbra tem distribuído as refeições que chegam até sua central de doações, vindas de grupos de voluntários que formaram neste momento uma corrente de solidariedade a fim de também suprir as deficiências do Estado.

Desde o dia 3 de maio, a Ulbra faz um trabalho voluntário de acolhimento dessas pessoas, fazendo a distribuição dos donativos enviados por toda a sociedade brasileira, em um esforço e uma corrente de solidariedade inéditos. São oferecidas quatro refeições diárias, totalizando cerca de 30 mil refeições, todas elas enviadas por voluntários e empresas parceiras e distribuídas pela Ulbra.

Além da distribuição da alimentação para os 8 mil desalojados, a Ulbra distribui água potável, produtos de higiene pessoal, roupas, colchões, agasalhos, cobertores e fraldas, entre outros produtos, além de disponibilizar, com a ajuda dos órgãos públicos, entidades, estudantes e professores, médicos e enfermeiros 24 horas, ambulância, medicamentos e segurança pública. Também oferece assistência jurídica para a confecção de documentos, amparo psicológico e cuidado com idosos, enfermos e crianças.

A Ulbra também acolheu neste período mais de mil animais, entre cães, gatos e equinos, que foram tratados no Hospital Veterinário da Ulbra, entre eles o animal que se tornou símbolo da resiliência do povo gaúcho diante desta tragédia, o Cavalo Caramelo.

Diante deste quadro extraordinário, problemas pontuais existem e são sanados tão logo chegam ao conhecimento da instituição, que não tem medido esforços para acolher a comunidade de Canoas e arredores que busca na instituição um refúgio seguro neste momento de tragédia e dor.

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