Ruas de bairros pobres de São Leopoldo viram canais após enchente
Nos bairros mais pobres de São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre, as ruas se transformaram em canais após a enchente do rio dos Sinos, que inundou 80% das casas da cidade desde o começo deste mês.
O que aconteceu
Mais de 180 mil pessoas foram atingidas pelas enchentes em São Leopoldo. Os 107 abrigos montados em São Leopoldo receberam aproximadamente 14 mil moradores locais afetados pela inundação.
Mais de 100 mil ficaram desalojadas ou desabrigadas. O total representa cerca de 46% da população da cidade de 217 mil habitantes. Ao menos 34 mil casas ficaram debaixo d'água.
Muitas das pessoas atingidas pela tragédia não quiseram sair de suas casas na região dos bairros Vila Progresso e Rio dos Sinos. Entre os argumentos, os que mais se repetem são as raízes fincadas e também o receio de furtos.
Moradores afirmam que militares deixaram de ajudar a população que estava ilhada. Os moradores dizem que, nessas regiões mais pobres, faltou assistência -dos governos federal, estadual e municipal- desde o primeiro dia de enchente, em 4 de maio. 15 dias depois, disseram ter visto, pela primeira vez, a presença do Exército no local. Em contraponto, também desde o início da tragédia, quem faz resgates e continua ajudando quem decidiu não sair são os próprios vizinhos, que também perderam tudo.
Ajuda de vizinhos virou fundamental
A operadora de telemarketing Valquiria Ribeiro Alves, 38, conta que, se não fossem seus vizinhos, não estaria viva hoje. "Das autoridades não tinha nada: não tinha Defesa Civil, não tinha bombeiro, não tinha primeiros-socorros, uma boia, um colete, qualquer coisa que pudesse nos auxiliar", afirmou ao UOL neste domingo (19).
Essa é a minha tristeza como moradora. Nem é tanto o sentimento de abandono, é o sentimento de desprezo, de que nós fomos desprezados.
Valquiria Ribeiro Alves
As ruas do bairro Rio dos Sinos, atuais canais de água, estão sendo cortadas a todo momento por barqueiros. Esses homens, moradores do local, perderam tudo na enchente, mas decidiram dedicar mais de 10 horas do dia, diariamente desde o dia 4, para levar e trazer moradores, comida e insumos. Um deles é Ronaldo Barbosa de Brito, 53, empresário que tem uma empresa de manutenção predial no bairro. Ele conta que perdeu tudo dentro de casa e também na empresa. "Não deu tempo de tirar nada. Tinha seis carros na minha empresa, mas só deu tempo de sair de casa sem riscos maiores", disse.
Nasci aqui, me criei aqui. É algo desconhecido o que a gente tá enfrentando. Todo mundo aqui perdeu tudo. Tudo. Não sobrou nada.
Ronaldo Barbosa de Brito
Sobrou solidariedade entre os vizinhos. A cada esquina onde havia trecho de asfalto aparente, pessoas esperavam por um dos barqueiros. Muitas delas estão em abrigos e foram até o local neste domingo para ver como está a casa onde vivia e se ainda é possível retirar algum item, como roupas. . "Eventualmente, hoje, eu vi um caminhão do Exército aqui. Nós não estamos recebendo apoio de ninguém. Apenas voluntários", afirmou o barqueiro João Carlos da Silva, 53.
Prefeito diz que população foi avisada com antecedência. Ary Vanazi (PT), afirmou nesta segunda-feira (20) ao UOL que as pessoas foram avisadas sobre a cheia e que as que ficaram ilhadas foram aquelas que decidiram não sair de casa.
Assistência à população. Prefeito garante que população local não está desassistida e que, em conjunto com o Exército, tem entregado comida e água a esses moradores - o que os moradores negam. Vanazi ainda citou que a previsão é de que, com o funcionamento das bombas d'água, boa parte da cidade deixe de estar inundada até sexta-feira (24).
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Quero receberMais de 15 dias longe de suas casas
Uma das pessoas atendidas pelos barqueiros da região é a estudante de pedagogia Jóice Vegas, 34. Na manhã do domingo, ela voltou ao seu apartamento pela primeira vez em 15 dias. Lá, buscou algumas mudas de roupa e uma boneca para a filha, que pede, há duas semanas, para voltar para casa.
Nunca passei por isso. É a primeira vez. Sempre fui a que doei, agora eu que tô pegando doação.
Jóice Vegas
Um outro morador foi resgatado debaixo d'água, com a água acima da altura do peito, depois de ter decidido voltar para sua casa, que segue inundada, para tentar recuperar algumas máquinas de fazer pão, para poder voltar a trabalhar como autônomo.
Pedro Juarez Godoy, 62, faz suas vendas na cidade de Viamão, a 47 quilômetros de onde vive. Lá, ele produz pães e churros. Nos últimos 15 dias, desabrigado, não conseguiu voltar a trabalhar e tem medo de passar por necessidades financeiras.
Enquanto estava embarcada para retratar as condições atuais do bairro, a reportagem observou Godoy na água, abraçado a um maquinário e tremendo muito. O barqueiro foi até ele, ajudou a colocar os objetos sobre a embarcação e ajudou a socorrer o autônomo.
Outro problema latente nos bairros pobres de São Leopoldo é o constante contato dos moradores com água contaminada. Pelos novos canais do bairro Rio dos Sinos, havia animais mortos, marcas de óleo e odor forte. Mesmo assim, a população entra na água fazendo contato direto com a pele.
O serralheiro Rafael Costa do Nascimento, 34, afirma estar com muita dor nas pernas. "Não sei se eu tô com dengue. Tô há uns três dias mal já, tava de cama", disse. Ele, diariamente, é voluntário no bairro, ajudando a levar alimentos para as pessoas que não deixaram suas casas.
Tive contato com água contaminada, peguei uns dias de chuva também, porque, em alguns dias, a gente teve que se deslocar de lá pra cá.
Rafael Costa do Nascimento
Com a chegada para a retirada de água da região, os moradores afirmam que, pela primeira vez, o nível da cheia baixou nos bairros. Observando a água, eles dizem, também, que é a primeira vez que se notam correntezas, como se estivessem sendo sugadas.
Realidade x esperança
Além da casa, Jóice Vegas perdeu o estágio que fazia junto à prefeitura da cidade. Ela trabalhava em uma escola que atendia crianças autistas. A escola foi inundada até o teto.
O que mais chamou a atenção dela ao observar o bairro onde morava há 15 anos foi o odor da água. "O cheiro é de morte. A gente sabe que tem gente morta ali embaixo. O número vai ser assustador", afirmou.
Já a doméstica Lenir Negrini Rodrigues, 72, está viúva há apenas 4 meses. "De uma tragédia, que foi a perda do meu marido, nunca vou me recuperar. Dessa, eu vou. Fico feliz que ele não passou por isso tudo", disse.
Segundo ela, o Rio Grande do Sul é muito corajoso. "E a gente vai vencer. Eu fui atingida. A minha casa minha era alugada. Vamos pedir a Deus que nos dê força e coragem. Mais fé. Deus deu a vida pra nós. Vamos cuidar dela", complementou.
Quem opta por ficar
O pintor José Gerardi, 74, e a costureira Nilda Gerardi, 61, moram juntos no mesmo sobrado há mais de 40 anos, no Rio dos Sinos. Disseram nunca ter visto, ao longo desse tempo, nada parecido.
"Vinha enchente, mas pequenininha assim. Desse jeito, nunca", afirmou José. A mulher tem pressão alta e problemas no coração. E o que mais a prendeu dentro de casa foi a paixão que sente por sua xodó, uma gatinha amarelada chamada Mel.
Mais adiante, quando calmar um pouco, vamos vender aqui pra ir pra outro lugar, porque eu não vou esperar de novo outra enchente.
Nilda Gerardi
Dentro da casa deles, não há energia elétrica. A parte de cima aglomera muitos itens que estavam no primeiro piso, que, atualmente, está completamente inundado. Apesar das dificuldades, preferem não sair de casa e esperar a água baixar.
Assim como o casal de idosos, Nilton César Viana, 52, que trabalha com fruteira, sempre morou perto dali, na Vila Mauá. Diariamente, ele vai até próximo de sua casa para observar o nível da água. A ideia é voltar para casa assim que houver possibilidade.
Sou obrigado a voltar pra cá de volta. Sou daqui. Nasci aqui.
Nilton César Viana
A primeira volta à casa
Com água da enchente acima do tornozelo, a gerente administrativa Katelyn Sinott, 26, aguardava a aproximação de um barqueiro para conseguir voltar, pela primeira vez em duas semanas, ao apartamento onde vivia desde setembro do ano passado.
Um barqueiro desconhecido topou levá-la até o condomínio. Lá, ela subiu as escadas do prédio até chegar em seu apartamento, no terceiro andar. A porta de entrada estava arrombada.
Mas ela tinha ciência disso. Os condôminos ensinaram uns aos outros como arrombar as fechaduras para que os moradores dos primeiros andares, que não tinham para onde ir, pudessem subir e ficar seguros.
Dentro do apartamento, tirando a porta de entrada, estava tudo intacto. "Fiquei feliz porque serviu para abrigar alguém que necessitava", disse.
Depois, ela foi até a garagem, onde viu seu carro, ainda financiado, coberto por lama até o teto. A ideia dela era fotografá-lo para tentar acionar o seguro.
Os animais de São Leopoldo
Quando um dos barqueiros avisou à reportagem que aconteceria o resgate de um cavalo, era difícil imaginar que esse cavalo já estivesse morto. Mas foi o que aconteceu.
Em estado de decomposição, o cavalo teve uma corda amarrada em sua pata e foi arrastado, por cerca de 15 minutos até a saída do bairro, em uma área que tem sido utilizada como lixão.
O barqueiro afirmou ser importante retirar o cadáver do cavalo por conta do odor que estava causando às casas próximas, onde há pessoas vivendo. E o cheiro era indescritívelmente ruim.
Mas também muitos animais, principalmente gatos e cachorros, foram resgatados. Dois gatos neste domingo, inclusive. Eles tinham ficado em uma casa ilhados, mas seus tutores conseguiram voltar para buscá-los.
Além disso, muitos cachorros ficam próximo das águas, juntos. Por vezes, eles tentam entrar na água, como se estivessem tentando chegar a um lugar específico. Ao não conseguir nadar, eles retornam para a terra firme.
Os moradores dizem que, antes, havia muito mais animais na rua na região, mas muitos dos bichos foram levados para veterinários que estão cuidando dos animais que também foram vítimas das enchentes.
Ronda noturna
Sem energia elétrica, as ruas dos bairros ilhados de São Leopoldo viraram uma espécie de terra sem lei à noite, no escuro. Depois de registrar furtos em casas desses locais, moradores decidiram criar uma rotina de monitoramento contínuo nas águas.
Reclamando da falta de policiamento ostensivo na região, moradores se revezam para navegar pelos canais de São Leopoldo. "Eu vou apitando, largo foguete pra sinalizar que sou eu, fico com luz acesa. Passo nas casas e boto no grupo do WhatsApp do bairro pro pessoal ver que está sendo cuidado", afirmou Elisandro Dutra Grubert, 38, morador há 22 anos do bairro Vila Progresso.
Eu fico na parte da noite fazendo a segurança aí. Porque, além do que o povo salvou, tem esses vagabundos que querem levar o que o povo salvou.
Elisandro Dutra Grubert
Ele afirma que a ronda noturna deu certo. Desde quando começaram a realizar o monitoramento, os furtos nessas regiões pararam.
No começo, ele conta que, à noite, observou um ladrão em um barco feito de papelão. "Ele estava nadando com duas barras de alumínio, nadando em cima, pra furtar os carros", disse.
O temor de quem já perdeu tudo faz com que qualquer movimentação estranha se torne suspeita. Enquanto a reportagem aguardava, na noite deste domingo, um barqueiro buscar uma lanterna na própria casa, um vizinho se mostrou receoso.
Pendurado nas grades de ferro ao lado do portão, ele ordenou que as luzes fossem apagadas. Questionou quem eram e o que faziam. Não acreditou nas respostas. Afirmou estar armado e que contaria até três antes de atirar. Parou no número dois.
Um outro barqueiro, que passava no mesmo local, resgatou a reportagem. Já em terra firme, moradores afirmaram conhecer o vizinho. Se trata de um comerciante, que perdeu quase tudo na enchente e que poderia ter se apavorado ao imaginar perder as últimas coisas que lhe restavam.
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