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Na tragédia do RS, culpa recai sobre prefeitos, governador e União

8.mai.2024 - Registro dos danos causados pela enchente na região do Centro Histórico e zona sul na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Imagem: Marcelo Oliveira/Thenews2/Folhapress

Hygino Vasconcellos

Colaboração para o UOL, em Balneário Camboriú (SC)

25/05/2024 04h00Atualizada em 26/05/2024 15h57

Passadas quase três semanas desde o início das enchentes no Rio Grande do Sul, que deixou 166 mortes até agora, já é possível ter um quadro um pouco mais claro do que não foi feito pelos governos para evitar — ou, ao menos, minimizar— os impactos do desastre que abateu o estado. Mas de quem é a responsabilidade pelo quadro atual?

O que não foi feito antes da tragédia

Pesquisadores e políticos ouvidos pelo UOL reconhecem que a tragédia de agora não tem precedentes, mas dizem que poderia ter sido feito mais para evitá-la. Isso porque não é a primeira vez que o estado é atingido por fenômenos do gênero. Em 2023, 75 pessoas morreram em três desastres naturais, segundo dados do governo estadual.

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Mapear áreas de risco para desastres

  • Responsabilidade: estado e municípios, com apoio do governo federal

De 497 municípios gaúchos, só 65 têm esse mapeamento, o que corresponde a 13% do total. Os dados do SGB (Serviço Geológico Brasileiro) foram divulgados inicialmente à RBS TV e confirmados pelo UOL. A identificação e o mapeamento dessas áreas é definida pela lei 12.608, de 2012, segundo o advogado e professor de direito ambiental da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) Délton Winter de Carvalho.

Incluir cidades em cadastro nacional de áreas suscetíveis

Corpo de Bombeiros e Defesa Civil trabalham no local de um deslizamento de terra em Santa Maria (RS) Imagem: GABRIEL HAESBAERT/ISHOOT/ESTADÃO CONTEÚDO

  • Responsabilidade: municípios

Só cinco municípios gaúchos estão na lista de áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas, entre outros desastres. Trata-se de Gramado, Harmonia, Alegrete, Montenegro e Pareci Novo. No país todo, são só 40 cidades. A informação foi obtida com o governo federal pelo professor Winter, que coordena o grupo de pesquisa Direito, Risco e Ecocomplexidade, da Unisinos. A entrada das cidades no cadastro deve ser solicitada pelas prefeituras ou por indicação do estado ou do governo federal. A adesão tem como consequência, por exemplo, a obrigação de criar mecanismos de controle e fiscalização para evitar a construção nessas áreas de risco.

Todo município que está no cadastro deve ter mapa de risco de desastres, e esse mapa deve ser considerado no plano diretor para ordenação urbana.
Délton Winter de Carvalho, professor de direito ambiental da Unisinos

Tirar do papel o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil

  • Responsabilidade: governo federal

Previsto por lei de 2012, o plano não saiu do papel, mas o governo federal pretende que isso ocorra no segundo semestre. Ele tem como objetivo apontar os riscos de desastres no país, como serão as ações dos governos em meio a um desastre e ainda especificar as classificações de risco em baixo, médio, alto e muito alto. A lei que previa a criação do plano foi promulgada depois da tragédia de Teresópolis, quando deslizamentos mataram 900 pessoas na região serrana do Rio.

O deputado estadual Marcus Vinicius (PP), que integra a base governista de Eduardo Leite na Assembleia Legislativa, defende uma solução "nacional" para o enfrentamento a desastres e não medidas locais ou regionais. Para o político, essas ações devem ser bancadas pela União. O político observa que até um ano e meio atrás, o governo estadual não conseguia pagar os funcionários em dia. "Com um Estado limitado, estrangulado do ponto de vista econômico, é muito difícil acreditar que a gente conseguiria fazer alguma coisa", pontua.

Não tem como um prefeito de uma cidade fazer política de prevenção com os recursos minguados que tem, sendo que o efeito é quase inócuo diante do impacto regional ou estadual de uma situação como essa. Marcus Vinicius (PP)

Destinar mais recursos para compra de equipamentos pela Defesa Civil estadual

  • Responsabilidade: estado

O órgão gaúcho sofreu cortes no orçamento com o passar dos anos para a compra de equipamentos. De R$ 1 milhão em 2022, caiu para R$ 100 mil em 2023 e para apenas R$ 50 mil em 2024. "Mal dá para comprar um carro com esse valor", diz a deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB). Ela afirma que seu próprio gabinete recebeu mais de 1.000 pedidos de resgates, evidenciando o número insuficiente de servidores na Defesa Civil.

Me senti dentro de um filme de terror. A gente não tinha capacidade para chegar em todo mundo.
Bruna Rodrigues, deputada estadual (PCdoB)

O governo do estado contesta esse recorte sobre os recursos destinados à aparelhagem do órgão. A Secretaria de Comunicação ressalta que, no orçamento de 2024, estão previstos R$ 117 milhões para ações de enfrentamento e prevenção de desastres naturais e que, após as enchentes, foram anunciadas mais R$ 617 milhões para essa finalidade.

Realizar manutenções preventivas

  • Responsabilidade: município

O alagamento de uma parte de Porto Alegre revelou que o sistema de contenção contra enchentes precisa de manutenção e melhorias. O UOL mostrou que a prefeitura não gastou nenhum centavo em prevenção contra enchentes no ano passado. Também é necessária a modernização das 23 casas de bombas espalhadas pela capital gaúcha. "O sistema antienchentes é robusto, tem quase 70 quilômetros de proteção, mas não foi feita nenhuma manutenção, mesmo com as enchentes de 2023", diz o deputado estadual Leonel Radde (PT). O deputado estadual Felipe Camozzato (Novo) observa que o sistema contra enchentes não se limita a Porto Alegre e se estende para outras cidades, como Canoas e São Leopoldo. Para o político, se há problemas no sistema, não é restrito à capital gaúcha.

Eu tenho minhas dúvidas se a falta de manutenção é a única responsável pela tragédia. Me parece que o próprio sistema de cheias colapsou. E, mesmo se estivesse com a manutenção em dia, teria colapsado porque houve extravasamento por cima dos diques. Felipe Camozzato (Novo), deputado estadual

O sistema que existe desde a década de 1970 foi colocado à prova só agora. Mas isso não isenta [o governo] da responsabilidade de manutenção.
Jaime Federici Gomes, engenheiro civil e professor da PUCRS

Ampliar orçamento do departamento de águas

  • Responsabilidade: município

O DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgotos) é responsável pela distribuição de água e pelo sistema antienchentes em Porto Alegre. O órgão sofre enxugamento de pessoal e de recursos, conforme dados levantados pelo professor de administração pública da UFRGS Aragon Erico Dasso Junior. Em 2013, o DMAE tinha 2.108 servidores, número que baixou para 1.738 em 2017 e hoje está em 1.072. A diminuição ocorre mesmo com a incorporação do DEP (Departamento de Esgotos Pluviais) e seus 162 funcionários pelo DMAE, em 2019. O orçamento do órgão também sofreu cortes, caindo de R$ 206,96 milhões, em 2011, para R$ 93,68 milhões, em 2021.

Isso é o que eu chamo de sucateamento.
Aragon Erico Dasso Junior, professor de administração pública da Ufrgs

Reforçar estruturas a partir de novo histórico de chuvas

  • Responsabilidade: municípios, estado e governo federal

A força das águas danificou ou destruiu estruturas, como pontes. Ainda não há um levantamento da quantidade, segundo a PRF (Polícia Rodoviária Federal) e o CRBM (Comando Rodoviária da Brigada Militar). Arroio do Meio, por exemplo, perdeu duas pontes e está praticamente ilhada. Reforçar essas estruturas é necessário justamente para evitar que elas sejam destruídas, explica o professor da Unisinos. O colapso de pontes durante enchentes já aconteceu outras vezes no Rio Grande do Sul, inclusive no ano passado - por exemplo, em Muçum, em novembro, e em Nova Roma do Sul, em setembro.

Quando uma ponte colapsa, as pessoas não conseguem sair do local e o resgate não consegue chegar.
Délton Winter de Carvalho, professor de direito ambiental da Unisinos

Imagem mostra o que sobrou da cidade de Muçum, no RS, após as chuvas Imagem: Nelson Almeida/AFP

Impedir a reconstrução de casas em áreas já atingidas

  • Responsabilidade: municípios

Duas cidades do Vale do Taquari —Roca Sales e Muçum— planejam desocupar áreas atingidas rotineiramente pelas enchentes. O deputado Rafael Braga (MDB), que integra a base governista na Assembleia Legislativa, entende que não se deve mais permitir a construção nesses locais. Porém, para Radde, isso já deveria ter acontecido desde o ano passado. Não ter evitado o retorno dos moradores para esses locais os colocou em risco novamente. O deputado Marcus Vinicius argumenta que a remoção é custosa e não pode ser assumida apenas pelas prefeituras.

O gasto com reconstrução é muito maior do que com proteção e prevenção. A maioria do gasto para as cidades atingidas é repetitivo. O dinheiro foi literalmente para o ralo.
Leonel Radde, deputado estadual (PT)

Tirar alguém da beira de um rio, da encosta de um morro ou construir loteamentos é um dispêndio de valores muito significativo, que as prefeituras sozinhas não têm disponibilidade. Marcus Vinicius (PP)

Implementar sistemas de alertas sonoros em áreas alagadas

  • Responsabilidade: estado

No Rio Grande do Sul, há poucas cidades com sistema de alerta sonoro, normalmente instalados em postes. Em outubro do ano passado, o governo estadual anunciou que avaliava a instalação desse sistema em algumas cidades do Vale do Taquari, que foram bastante atingidas pelas enchentes, segundo o jornal A Hora. O UOL procurou a Defesa Civil estadual para saber se a proposta avançou, porém, ainda não houve retorno.

Atualizar sistema de alertas por SMS

  • Responsabilidade: governo federal

Um novo sistema de alerta está pronto há pelo menos seis meses, mas ainda não foi liberado pelo governo federal, conforme a Folha de S.Paulo. A Anatel obrigou as operadoras de telefonia a criar um mecanismo que trava todas as funções do celular no momento em que um alerta de emergência é disparado simultaneamente para todos os usuários. Mesmo com o celular do silencioso, há um sinal sonoro.

Não temos um sistema de alerta que chegue imediatamente às pessoas.
Fernanda Melchionna, deputada federal (PSOL-RS)

O que diz o governo federal: em nota ao UOL, o Ministério da Integração, via Defesa Civil Nacional, informou que o PNDC (Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil) está em elaboração desde 2021, "num processo com ampla participação do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil e todos os setores da sociedade".

Luciane Dewes Brum registrou enchente do segundo piso da casa onde mora nas imediações da Arena do Grêmio, em Porto Alegre Imagem: Arquivo pessoal

Criar rotas de fuga, treinar população e se espelhar em exemplos internacionais

  • Responsabilidade: municípios

A população deve saber quando e para onde ir em caso de desastre e passar por treinamentos periódicos, diz Winter. Países como Chile e Japão, frequentemente afetados por terremotos, implementaram programas similares, afirma Melchionna. Por lá, os treinamentos ocorrem até em escolas.

Não ter forçado a saída de moradores resistentes em deixar suas casas

  • Responsabilidade: estado e municípios

A retirada forçada de pessoas em áreas de risco pode, de fato, ocorrer. É o que explica o professor da Unisinos. Porém, deve ser considerada como última alternativa. "Caso o risco seja eminente, grave, pode ser feita uma remoção forçada." Winter explica que em São Sebastião (SP) o município e o Estado entraram na justiça para, caso fosse necessário, fazer a remoção forçada, o que foi autorizada pela justiça. "A liberdade não é um direito absoluto, a gente tem liberdade de ir e vir, mas é um direito relativo", diz Dasso Junior. "Eventualmente, há outro direito que se sobrepõe a liberdade. Por exemplo, a garantia à vida pelo Estado é um direito que se sobrepõe à liberdade."

Dragagem de rios

  • Responsabilidade: municípios com autorização do Estado

A dragagem poderia aumentar o leito dos rios e garantir mais espaço para a água passar, entendem os deputados estaduais Rafael Braga (MDB) e Marcus Vinicius (PP), da base governista de Leite. "A própria dragagem do Guaíba é uma questão que há muito tempo não se faz, sempre se justifica propósitos ambientais como o risco de movimentar metais pesados que poderiam estar depositados no leito do Guaíba", diz o progressista. Na última segunda-feira (20), o MP-RS (Ministério Público do Rio Grande do Sul) recomendou que os municípios respeitem as normas ambientais durante o desassoreamento após a enchente.

Preservar normas ambientais

  • Responsabilidade: estado e municípios

Em 2019, o governador Eduardo Leite (PSDB) alterou 480 normas do Código Ambiental do estado, como mostrou a Folha de S.Paulo. O texto criou vários atalhos para acelerar a concessão de licenças ambientais, inclusive para atividades econômicas que o próprio Consema (Conselho Estadual do Meio Ambiente do RS) considera de alto potencial poluidor. No LAC (Licenciamento Ambiental por Compromisso) o próprio interessado emite sua licença, sem análise prévia dos órgãos ambientais. Para ambientalistas, as mudanças abrem brecha para obras em áreas úteis no combate às cheias. O governo do RS nega que a lei tenha afrouxado o controle estatal sobre o meio ambiente.

Desastre é uma equação: risco mais vulnerabilidade. Somos um país muito vulnerável socialmente e, além de tudo, os riscos vêm aumentando. Estamos em um padrão de temperatura média elevada em 1,2 º C, e isso muda muito o comportamento climático. Não estamos mapeando as áreas de risco nas cidades, não estamos evitando ocupação de áreas, nos planos diretores. Também não temos plano de resposta, que está na lei, para infraestruturas críticas, ou seja, como eu escoo a população dentro da área, como vai ser o sistema de alerta, qual a manutenção dessa estrutura.
Délton Winter de Carvalho, professor de direito ambiental e especialista em direito de desastres

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