'Criança não pode ser mãe', dizem familiares de menina que fez aborto legal
Do UOL, em São Paulo
17/06/2024 00h20Atualizada em 17/06/2024 00h38
Os familiares da menina capixaba que conseguiu fazer um aborto legal aos 10 anos após ser estuprada pelo tio afirmaram que "criança não pode ser mãe" na primeira manifestação deles, sob anonimato, sobre o caso, ocorrido em 2020.
O que aconteceu
Os familiares disseram ao "Fantástico" (TV Globo) que o episódio destruiu toda a família e "desmoronou toda a estrutura da família". Eles falaram sob anonimato por questões de segurança. Atualmente, a avó tem a guarda da menina, hoje adolescente, mas disse que cuida dela desde os 27 dias de vida, a considerando e se referindo a ela como "filha".
A menina vivia no município de São Mateus, no Espírito Santo, quando descobriu a gestação após a violência sexual. À época, um hospital do estado negou a realização do aborto e protestos chegaram a ser realizados para tentar impedir o acesso da vítima ao procedimento legal.
Na época, casa da avó da menina foi invadida por um homem desconhecido que disse que o aborto era "pecado". O homem, nunca visto anteriormente pela mulher, teria dito: "Sabia que a senhora não pode fazer o aborto da sua filha? [Mulher perguntou por quê] Que não pode porque a senhora está pecando, que a senhora está fazendo um negócio que Deus não gosta". Na ocasião, a mulher disse que a filha era dela e quem mandava nela era ela: "Então, se ela não quer [seguir com a gestação], eu também não quero".
Avó afirmou que nunca desconfiou que tio estuprava a menina e relata que a garota era ameaçada pelo estuprador. "O que aconteceu, eu fiquei de boca aberta. Eu nunca imaginava. [Ele ameaçava ela?] Ameaçava. Dizia que se ela falasse alguma coisa, ia matar o pai dela, eu, o avô, os tios e, principalmente, a tia, que ela gostava muito e era a mulher dele. Mato todo mundo e vou embora", declarou a avó da garota à emissora.
Advogada da família da menina diz que criança tinha medo das ameaças e não conhecia o seu corpo para saber que estava grávida aos 10 anos. Segundo a defensora Anna Luiza Sartorio Bacellar, a família levou a garota ao hospital da cidade, onde foi confirmada a gestação. Na sequência, a vítima foi retirada da família e passou alguns dias em um abrigo. Apenas após determinação judicial, ela foi levada para um hospital de referência no Espírito Santo, que negou o aborto legal, e ela precisou ser levada a uma unidade de saúde de Pernambuco para realizar o procedimento.
Criança não pode ser mãe. Como é que criança vai ter uma criança? Não tem condição.
Familiar da garota que realizou aborto legal em 2020
"É um absurdo ela ser punida", disse diz diretor de unidade onde garota fez o aborto legal. "Porque ela já é punida. Ela já foi estuprada e não quer continuar a gravidez", acrescentou Olímpio Barbosa de Moraes Filho, diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, em Pernambuco. Ele explicou que a menina descobriu a gestação antes de 22 semanas, mas foi obstruída de realizar o procedimento em um hospital do Espírito Santo.
Isso é uma coisa tão absurda. Imaginar que alguém defenda disso [PL do Aborto, veja mais abaixo]. É muito triste. É uma sociedade misógina, que tem ódio às mulheres. É tudo hipocrisia né, porque a gente sabe que quando acontece com a família deles, eles pensam diferente.
Olímpio Barbosa de Moraes Filho, diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros
"Me dói até hoje", diz avó. "E vai ficar me doendo pro resto da minha vida. Não adianta que não vai sair de mim [que ela passou por esses abusos sexuais]. Até hoje, faz quatro anos. Eu olho para a minha filha e eu sofro. Eu olho para minha filha, dói", completou.
O tio da menina ainda está preso. Ele foi detido no dia 18 de agosto de 2020, em Minas Gerais, e foi transferido para o Espírito Santo. Em conversa com os policiais quando foi preso, o homem teria admitido ter abusado sexualmente da sobrinha desde 2019. Porém, a Polícia Civil informou que a criança foi vítima de estupros por ao menos quatro anos. O nome dele não é divulgado por questões legais, inclusive para não identificar a vítima.
Relembre o caso
Menina era vítima de estupros havia quatro anos antes de engravidar, conforme a Polícia Civil do Espírito Santo, que investigou o caso. As autoridades tomaram conhecimento do caso no dia 8 de agosto de 2020, quando a garota deu entrada num hospital de São Mateus (ES) com suspeita de gravidez. Exames confirmaram a gestação.
Os familiares da menina violentada recorreram à Justiça, que a autorizou o aborto. No entanto, a unidade de saúde indicada para fazer o procedimento, o Hucam (Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes), em Vitória, recusou-se a fazer o procedimento alegando que a menina não se encaixava nos critérios do Ministério da Saúde. Ela foi então encaminhada ao Cisam, em Pernambuco, para realizar o procedimento aprovado pela Justiça.
O procedimento foi realizado em agosto de 2020 no Cisam/UPE (Centro Integrado Amaury de Medeiros da Universidade de Pernambuco). Como o UOL mostrou na época, a operação foi mantida em sigilo pela equipe médica para evitar novos tumultos e protestos — que já haviam ocorrido na semana anterior ao procedimento, com a presença de grupos radicais e religiosos, que foram ao local para contestar o aborto, que foi autorizado pela Justiça.
PL do aborto
Nesta semana, repercutiu no país o PL (Projeto de Lei) 1904/2024 equipara o aborto a homicídio após 22 semanas de gestação mesmo em casos de gravidez derivada de estupro. A urgência foi aprovada em votação-relâmpago na Câmara na última quarta (12).
A proposta é do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que é próximo ao pastor Silas Malafaia. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tinha prometido colocar o tema em discussão no plenário em troca de apoio da bancada evangélica à sua reeleição na presidência da Casa em 2023.
O projeto ainda não tem data para ser votado. Com a aprovação da urgência, a proposta pode ir a plenário a qualquer momento, sem a necessidade de passar pelas comissões temáticas.
Lira disse que vai indicar uma "mulher moderada" para relatar. Segundo ele, isso será discutido com a bancada feminina. Caso seja aprovado o PL, seguirá para análise do Senado, onde o presidente Rodrigo Pacheco (PSD-MG) disse que não vai a plenário sem debate.
A enquete sobre a PL do Aborto no portal da Câmara dos Deputados já bateu um milhão de votos, com maioria contrária à proposta. No site oficial da Casa, a grande maioria (88%) disse discordar totalmente do projeto. São 918.249 votos contrários ante 112.352, ou 12%, que dizem concordar totalmente.
Ao todo, quase 1 milhão e 39 mil pessoas votaram até o final da manhã deste domingo (16). As outras três opções —concordar com maior parte, indeciso ou discordar na maior parte — não atingiram 1%.
Após a exibição da reportagem do "Fantástico", Sóstenes Cavalcante foi às redes sociais. Ao defender a proposta, o deputado falou sobre o que chamou de "três mentiras propagadas pela esquerda sobre o PL 1904/2024".
O que pode mudar com o PL?
A proposta em tramitação na Câmara mudará quatro artigos do Código Penal. Atos que hoje não são crime ou que têm pena de até quatro anos passam a receber tratamento de homicídio simples — punição de seis a 20 anos de cadeia.
Até mesmo os médicos poderão ser presos. Hoje, eles são considerados isentos de responder por qualquer tipo de crime. Pela proposta, poderão ser punidos em caso de interromper a gravidez de feto que não seja anencéfalo.
Situações em que aborto é permitido por lei
- Para salvar a vida da mulher;
- Gestação resultante de estupro;
- Feto anencefálico -- defeito na formação do tubo neural que resulta em bebê natimorto ou capaz de sobreviver apenas algumas horas.
Mudanças por artigo
Abaixo, veja como é cada artigo atualmente e como fica se o projeto for aprovado no Congresso:
Artigo 124
Como é hoje: Proíbe a mulher de fazer aborto ou consentir que alguém faça aborto nela, exceto em situações permitidas por lei.
Como ficaria: Quando houver viabilidade do feto em gestações acima de 22 semanas, as penas serão iguais ao crime de homicídio. A pena é cancelada quando as consequências do aborto forem tão graves que a punição torna-se desnecessária.
Artigo 125
Como é: Caracteriza como crime provocar aborto não legal sem consentimento da gestante. Pena de três a 10 anos.
Como ficaria: Em casos de feto viável, a interrupção da gravidez feita após 22 semanas de gestação será crime com pena igual ao homicídio — seis a 20 anos —, mesmo em gravidez derivada de estupro.
Artigo 126
Como é: Prevê pena de um a quatro anos de prisão para quem provocar aborto com consentimento da gestante depois de 22 semanas.
Como fica: Estipula punição igual ao crime de homicídio
Artigo 128
Como é: Não pune o médico que interromper uma gravidez consequência de estupro.
Como fica: Se a gravidez resultante de estupro tiver viabilidade e passar das 22 semanas, o médico não estará isento de punição.
Em caso de violência, denuncie
Ao presenciar um episódio de agressão contra mulheres, ligue para 190 e denuncie.
Casos de violência doméstica são, na maior parte das vezes, cometidos por parceiros ou ex-companheiros das mulheres, mas a Lei Maria da Penha também pode ser aplicada em agressões cometidas por familiares.
Também é possível realizar denúncias pelo número 180 — Central de Atendimento à Mulher — e do Disque 100, que apura violações aos direitos humanos.
Como denunciar violência contra crianças e adolescentes
Denúncias sobre violência contra crianças e adolescentes podem ser feitas pelo Disque 100 (inclusive de forma anônima), na delegacia de polícia mais próxima e no Conselho Tutelar de cada município.
Se for um caso de violência que a pessoa estiver presenciando, pode ligar no 190, da Polícia Militar, para uma viatura ir no local. Também é possível se dirigir ao Fórum da Cidade e procurar a Promotoria da Infância e Juventude.
Quem não denuncia situações de perigo, abandono e violência contra crianças e adolescentes pode responder pelo crime de omissão de socorro, previsto no Código Penal. A Lei Henry Borel também prevê punições pra quem se omite.
Funcionários públicos que se omitem no exercício de seus cargos, em escolas, postos de saúde e serviços de assistência social, entre outros, podem responder por crime de prevaricação.