Mulher é queimada durante cerimônia em SP; umbandista fala em 'transe'
Uma sessão de descarrego, limpeza espiritual, em um centro de umbanda de Diadema (SP) terminou com uma mulher queimada em setembro do ano passado. Desde então, o caso se arrasta na Justiça, enquanto a defesa do dirigente umbandista pede o reconhecimento da suposta inconsciência dele durante o "transe espiritual".
O que aconteceu
A denúncia do MP-SP (Ministério Público de São Paulo), da qual o UOL teve acesso, narra que, na noite de 9 de setembro de 2023, Cássio Lopes Ribeiro, 58, acendeu um fósforo e lançou em direção à vítima. Antes disso, o dirigente umbandista teria colocado pólvora próximo aos pés dela e derramado cachaça sobre seu corpo.
Dias antes da realização da limpeza espiritual, a mulher e a namorada, que não serão identificadas pela reportagem já que não foram localizadas, visitaram a "Tenda de Umbanda Caboclo Ubirajara e Exu Ventania" para uma consulta. Segundo a Promotoria de Justiça de Diadema, a vítima das queimaduras foi orientada a fazer o descarrego e comprar itens, como: pavios de pólvora, cachaça, dentre outros.
O MP-SP pediu à Justiça que Cássio responda por tentativa de homicídio triplamente qualificado com dolo eventual (assume o risco do crime). Mas a denúncia não cita um detalhe levantado pela defesa do acusado: o umbandista alega que estava incorporado por uma entidade.
O Foro de Diadema recebeu formalmente a denúncia em maio último. Em junho, os advogados de Cássio rebateram a acusação, afirmando que o dirigente umbandista estava "em estado de inconsciência no momento do incidente, em transe espiritual testemunhado por 150 pessoas". A primeira audiência para discutir o caso foi marcada para agosto.
Transe e Igreja Universal
Entre os argumentos da defesa de Cássio Lopes Ribeiro, dois se destacam: o dirigente umbandista estava inconsciente por causa do transe e, em 1998, o mesmo MP-SP denunciou sete pessoas pela morte de 25 fieis na Igreja Universal do Reino de Deus, mas sem intenção de matar ou machucar. Na ocasião, o teto do templo religioso, em Osasco, desabou e as investigações apontaram negligência dos envolvidos.
O advogado Hédio Silva Jr. fala em "aplicação seletiva da lei". "Isso escancara a aplicação seletiva da lei porque agora é religião de matriz africana, apelidada pela lei vigente como 'curandeirismo'. Pune-se o 'curandeiro' independentemente de prova. Tenho o maior respeito pela instituição Ministério Público, mas os fatos falam por si", disse ao UOL.
A defesa também cita decisões judiciais que reconheceram a carta psicografada como meio de prova. "Resta saber se kardecista [seguidor de Allan Kardec, que difundiu o espiritismo] recebe melhor tratamento no Judiciário em comparação com macumbeiro".
Porém, Fernanda Prates Fraga, professora de direito na FGV (Fundação Getúlio Vargas) Rio, ressalta que a jurisprudência sobre carta psicografada não comprova o suposto estado de inconsciência. "Os tribunais não discutem a qualidade da carta como prova, eles apenas reconhecem que não é uma prova ilícita. Ou seja, não foi uma prova obtida por meio de tortura, por exemplo, e pode ser anexada ao processo", explicou a doutora em criminologia ao UOL.
Os advogados do dirigente umbandista ainda citam uma suposta inconsistência nas circunstâncias em que o descarrego aconteceu. A defesa cita depoimentos prestados pela vítima das queimaduras ao MP-SP, delegacia e IML (Instituto Médico Legal). "É a própria vítima quem afirma, portanto, primeiramente que o inculpado teria despejado um produto líquido em volta dela, depois nela própria e novamente ao redor dela. Sobre o lançamento do fósforo, primeiro assevera que foi jogado no círculo da cachaça, depois nela própria e novamente na pólvora".
'Você não lembra de nada'
O dirigente umbandista Cássio Lopes Ribeiro reforçou ao UOL que ele não se lembra do que aconteceu. "O transe é um estado de consciência alterado, você não lembra de nada", garante.
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Quero receberSegundo ele, a inconsciência só não é plena logo quando o umbandista descobre a mediunidade. "A minha confiança em Exu - no meu caso, Exu Ventania - é tamanha que eu não percebo a incorporação. As entidades tomam totalmente o meu corpo", afirma.
Cássio diz ainda que os auxiliares do seu Exu, chamados de "cambones", não chegaram a colocar fogo na "Fumaça Negra", material que é misturado com álcool e colocado próximo à vítima. "Eles contam que veio um fogo, que a menina saiu correndo e ocorreu o incidente. [...] Vários trabalhos estavam ocorrendo ao mesmo tempo naquele dia".
A presidente da FNAb (Associação Nacional das Religiões Afro-brasileiras), Carol Modolo, disse ao UOL que trabalhos de limpeza devem ser feitos de forma individual. "Uma das orientações é que, quando realizar um trabalho com pólvora, fogo, não se coloque várias pessoas no mesmo espaço. Até porque a limpeza deveria ser algo individualizado, porque é um tratamento".
A defesa do dirigente umbandista afirma que ele não utilizou pólvora no descarrego. Cássio teria utilizado um fumígeno - material que causa fumaça - comumente presente nesse tipo de trabalho. Ao UOL, o delegado responsável pelo inquérito enviado ao MP-SP, Nelson Caneloi Jr., disse que não foi feita perícia no local.
Segundo ele, a denúncia só chegou à Polícia Civil cerca de dois meses depois do incidente, enviada pelo próprio MP-SP. "Existiu uma falha muito grande das partes, tanto do centro de umbanda, quanto das vítimas. Se tivessem comunicado a delegacia, teríamos ido ao local, preservado a cena e verificado os materiais".
O UOL tentou contato com a vítima das queimaduras por email, mensagem e ligação, mas não conseguiu resposta. O espaço segue aberto para manifestação.
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