'Vi morto abrir o olho no velório e construí sepulturas com rota de fuga'

"Não tenho medo da morte, mas sim medo de morrer / É que a morte já é depois que eu deixar de respirar / Morrer ainda é aqui".

Os versos da música Não tenho medo da morte, de Gilberto Gil, remetem ao maior medo de Alcione Alvim da Silva, 61, natural de Blumenau (SC), dono de três cemitérios na cidade. Ele não tem medo de morrer, mas do que pode anteceder sua morte.

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Na infância, Silva presenciou uma cena que mudaria sua vida para sempre: ele conta que uma pessoa no caixão abriu um dos olhos durante o próprio velório —e, depois, foi sepultada mesmo assim.

Desde então, ele tem medo de ser enterrado vivo. O pavor é tão grande que o levou a construir sepulturas com rotas de fuga. Ao UOL, ele conta sua história:

'O morto abriu um dos olhos'

"Eu tinha sete ou oito anos quando um evento assustador me marcou profundamente. Foi no velório de um vizinho. Estávamos todos ali, em volta do caixão, quando, de repente, o morto abriu um dos olhos. Fiquei apavorado.

Alcione construiu sepulturas com rota de fuga em cemitério de Blumenau
Alcione construiu sepulturas com rota de fuga em cemitério de Blumenau Imagem: Divulgação

Me lembro de alguém ir até o caixão para fechar o olho do coitado. Até hoje, não se sabe se ele havia de fato partido. Acredito que não. Depois daquele dia, passei a ter medo de ser enterrado vivo, e temo que isso aconteça com outras pessoas. Algumas histórias que ouvi reforçam esse receio.

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Em 1972, pouco depois do episódio, o ator Sérgio Cardoso morreu, vítima de infarto. À época, surgiram rumores de que a família teria pedido que o corpo fosse exumado e que, ao abrir o caixão, ele estaria virado de bruços, com arranhões no rosto. O fato sempre foi negado pelos familiares do ator. Apesar disso, a lenda foi contada durante muitos anos.

Tempos depois, conversando com um frei, amigo meu, fiquei sabendo de outro caso que me intrigou. Ele conta que estava no velório de uma freira, na Alemanha, quando, de repente, ela levantou o dedo polegar. Depois, despertou. Ela havia sofrido um episódio de catalepsia, condição em que os músculos do corpo ficam temporariamente paralisados e rígidos, como os de um cadáver.

Técnica permite que pessoa saia da sepultura, segundo Alcione
Técnica permite que pessoa saia da sepultura, segundo Alcione Imagem: Divulgação

'A pessoa consegue sair da sepultura'

Pensando em tudo que vi e ouvi, transformei meus cemitérios em algo diferente de tudo o que existe hoje. As sepulturas são verticalizadas e contam com rotas de fuga, que nada mais são do que pequenas portas que só abrem do lado de dentro.

Antes de colocarmos o caixão na gaveta, tiramos os parafusos que trancam a tampa e a deixamos um pouco deslocada para facilitar a saída. A ideia é que a pessoa use a tampa para jogá-la contra a porta e romper o lacre.
Alcione Silva

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A porta é lacrada com uma cola que leva 36 horas para secar. Se você considerar que a pessoa foi velada por 24 horas e somar a essas 36 horas, são 60 horas no total, entre a morte e a secagem da cola. Ainda assim, mesmo que a cola seque, o lacre é muito fino e flexível. A pessoa consegue sair da sepultura, com certeza absoluta.

Dentro das sepulturas há um sistema de aeração com duas canalizações: uma para sugar o ar que está dentro e outra que empurra ar limpo para a gaveta. O sistema possibilita que uma pessoa que hipoteticamente estiver viva ali não morra por asfixia. Existe também um biofiltro, responsável por evitar o espalhamento de odores.

Caixões não são lacrados, o que permite escapar
Caixões não são lacrados, o que permite escapar Imagem: Divulgação

Comecei a implementar esse sistema há cerca de 20 anos, mas foi só nos últimos dois ou três que o tornei perfeito e cheguei ao patamar de dizer: 'Agora a pessoa escapa daqui'. Hoje, tenho cerca de 1.700 sepulturas com rota de fuga em atividade. Cada uma delas já foi usada cerca de três ou quatro vezes. A cada três anos, elas são reocupadas.

Funciona assim: a pessoa compra o chamado jazigo eterno; dali a três anos, o que sobra do corpo passa por um tratamento térmico e vai para esse jazigo. Nesse jazigo, cabem as cinzas de várias pessoas de uma mesma família. Por isso, é um sistema barato.

Já foram construídas cerca de 1.700 sepulturas neste modelo
Já foram construídas cerca de 1.700 sepulturas neste modelo Imagem: Divulgação
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'Me empenhei em me tornar o melhor coveiro'

Até meus 21 anos, eu nunca havia pensado em trabalhar no ramo da morte. A vida me levou por esse caminho. Com essa idade, arrumei um emprego de coveiro "faz-tudo". Eu havia acabado de me casar com a minha primeira mulher. Morava de favor na casa do meu sogro, numa cidade vizinha.

Um ano depois, soube que o Cemitério São José, no centro de Blumenau, que hoje é meu, estava com problemas. Nenhuma empresa, nem mesmo o poder público, queria assumir a responsabilidade de administrá-lo. Como o cemitério disponibilizava uma casa para quem ocupasse o cargo, tive a ousadia de me oferecer como solução.

Eu era coveiro mesmo, fazia os enterros, as exumações. Ao longo dos anos, tenho certeza de que fiz algumas de pessoas que foram sepultadas vivas, pela posição do esqueleto. Isso me deixou ainda mais apavorado.
Alcione Silva

Depois de onze meses nesse trabalho, perdi meu pai, e eu mesmo me encarreguei de tudo. Velei o corpo dele por 36 horas em um cemitério antigo, com pouca estrutura. Depois, o sepultei onde ele queria. Naquele momento, entendi a importância dos cemitérios para as famílias enlutadas. Então, me empenhei em me tornar o melhor coveiro que esse país já viu.

'Precisamos honrar os mortos'

Após minha história se tornar conhecida, comecei a receber comentários de pessoas que zombaram das minhas sepulturas.

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Para elas, as rotas de fuga não faziam sentido, uma vez que nenhuma pessoa que estivesse viva resistiria ao tratamento que é feito no corpo depois da morte. Uma das principais etapas desse processo é a tanatopraxia, técnica de preservação de cadáveres.

De fato, aquelas pessoas estavam certas: nenhuma pessoa que estivesse viva sobreviveria a uma tanatopraxia. Pensando nisso, estou pondo em prática meu novo projeto profissional: abrir minha própria funerária, em que as famílias serão orientadas a não submeter os entes queridos a esse processo.

Em dezembro de 2024, solicitei um alvará judicial para a construção da funerária. O pedido foi negado, mas não vou desistir. Irei até o STF [o Supremo Tribunal Federal] se for preciso.

Se tenho alguma crença? Sim. Sou católico por tradição —mas minha força vem da ancestralidade. Foram meus ancestrais que construíram o asfalto que percorri para chegar até aqui. Os cemitérios, inclusive, são heranças dos nossos antepassados.

A palavra 'cemitério' é originária do grego koumeterian e do latim coemeterium. Significa dormitório, lugar onde se dorme, recinto onde se enterram e guardam os mortos. Lá estão as memórias dos que vieram antes de nós. Precisamos honrá-los.
Alcione Silva

Medo de ser enterrado vivo e catalepsia

O medo de ser enterrado vivo não é incomum e tem até nome técnico: tafofobia. Esse pesadelo da vida real tem fundo especialmente a partir de histórias em que pessoas que foram consideradas mortas, mas experimentavam alguma condição médica que as deixava apenas aparentemente sem vida, acabaram sepultadas e despertando já debaixo da terra. Essa é, aliás, uma das origens presumidas da prática do velório —uma forma de garantir que o falecido estava, de fato, morto.

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A catalepsia, apontada como uma das causas para o sepultamento de pessoas ainda vivas, é um distúrbio que deixa membros e cabeça paralisados e endurecidos por minutos, horas ou poucos dias. Isso pode criar a impressão de que a pessoa morreu. O distúrbio também reduz a sensibilidade tátil e impede a fala e o abrir e mover dos olhos.

Na catalepsia, as funções do organismo ficam mais lentas, mas são detectadas por exames e aparelhos médicos muito sensíveis, como o eletroencefalograma e eletrocardiograma. A condição não paralisa o coração e nem a respiração. Por isso, é improvável um médico confundir alguém nesse estado com um morto —basta verificar os indicadores do estado de saúde.

Ou seja, para alguém com catalepsia ser liberado para sepultamento estando vivo, só mesmo num passado muito distante, quando recursos tecnológicos não estavam disponíveis ou não havia verificação de óbito séria.

*Com informações de reportagens publicadas em 26/5/2021 e 27/8/2021

28 comentários

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Adhemar Prisco da Cunha Neto

Uma das cenas mais tristes que já assisti aconteceu em um necrotério. Vi o corpo de uma senhora sendo literalmente despejado sobre uma pedra de mármore, como um objeto descartado. Posteriormente, presenciei a família a velando. O respeito ao morto é uma questão de princípio. Parabéns a esse senhor, que, em tempos de valores superficiais, se preocupa com isso.

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Carlos Roberto Thomasi de Freitas

Fiquei fortemente inclinado a colocar no meu testamento vital que, declarado morto, (estando ou não, sabe-se lá): 1) que não aparafusem a tampa da urna, senão levemente; (é comum ver pessoas “voluntariosas” tomando a providência de aparafusar a tampa, com a disposição de estarem aprisionando alguém sem chances dela “escapar”, Credo!!!! Fico pensando, indignado, qual seria a motivação dessa gente, viu!!! 2) coloquem num dos bolsos um telefone celular (com carga para uma semana) e por medida adicional, um veneno poderoso, para o caso de “acordar” e concluir pelo destino inexorável, não tendo como escapar dele.  Detalhe importante: Na falta desses itens, de  últimos “socorros”, uma arma municiada, claro. Mas que destaquem duas pessoas encarregadas dessas “providências”. Não podem esquecer desse detalhe, caramba! Lembrando que, faca e corda não! Seria um sofrimento por demais atroz. Por último: “…que a terra me seja leve” para que eu siga em paz!

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Marcus Vinicius de Melo Paula

Também tenho medo de ser enterrado vivo. Um coveiro da minha cidade já me disse que ao abrir sepulturas para enterrar outros mortos das famílias observou caixões arranhados pelas unhas do dito morto.  Sugiro ao inventor um caixão de acrílico transparente e uma campainha dentro da caixão.  Será que o inventor topa uma franquia desse promissor negócio ???

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