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O chocolate que você ama pode ter cacau produzido com trabalho escravo

Cadeia produtiva do cacau na Bahia e no Pará passa por contratos e estrutura desfavoráveis ao trabalhador - Sidney Oliveira/Agência Pará
Cadeia produtiva do cacau na Bahia e no Pará passa por contratos e estrutura desfavoráveis ao trabalhador Imagem: Sidney Oliveira/Agência Pará

André Campos e João Cézar Dias

27/08/2020 04h04

Duas multinacionais do setor cacaueiro compraram amêndoas de um fornecedor abastecido com o uso de mão de obra análoga à escravidão na Bahia. Investigações do Ministério Público do Trabalho (MPT) obtidas pela Repórter Brasil revelam uma série de violações trabalhistas na rede de fornecedores das companhias Olam International e Barry Callebaut. Uma terceira gigante do agronegócio também se beneficiou do "cacau sujo": a Cargill.

As três empresas estrangeiras são responsáveis por 97% da moagem e torra das amêndoas no Brasil e fornecem para as principais marcas de chocolate, como Nestlé e Lacta (Mondelez) -- fabricantes dos famosos bombons "chokito" e "sonho de valsa". Mas antes de se tornar
uma guloseima na mão dos consumidores, o cacau brasileiro vive uma triste realidade no campo.

Ao menos 148 pessoas foram resgatadas do trabalho escravo em fazendas de cacau nos últimos 15 anos. Boa parte das operações ocorreu no Pará e na Bahia, os maiores polos nacionais. As violações aos direitos humanos incluem também ameaças de patrões, condições
degradantes de moradia e higiene, servidão por dívidas e até trabalho infantil.

Segundo o MPT, as duas figuras centrais nessa cadeia de crimes são os donos das fazendas e os chamados "atravessadores" — intermediários que fazem a ponte entre os fazendeiros e as grandes empresas de moagem.

Uma das fazendas flagradas com trabalho escravo pertence à empresa Chaves Agrícola e Pastoril, dona de diversas propriedades cacaueiras no sul da Bahia. Em setembro de 2017, auditores fiscais do trabalho resgataram nove pessoas em situação análoga à de escravos
na Fazenda Diana, em Uruçuca (BA).

De acordo com os auditores-fiscais do trabalho, do Ministério da Economia, a fazenda mantinha os trabalhadores em péssimas acomodações e sem acesso a banheiro ou água potável. Os lavradores tomavam banho em uma lagoa de águas turvas e paradas. Para beber e cozinhar,
tinham de "coar" a água coletada em cacimbas para remover girinos e peixes.

Três empresas estrangeiras são responsáveis por 97% da moagem e torra das amêndoas no Brasil - Sidney Oliveira/Agência Pará - Sidney Oliveira/Agência Pará
Três empresas estrangeiras são responsáveis por 97% da moagem e torra das amêndoas no Brasil. Na foto, trabalhador maneja o cacau.
Imagem: Sidney Oliveira/Agência Pará

Fazenda com trabalho escravo fornecia para grandes empresas

De acordo com o apurado pelo MPT à época da fiscalização, o cacau colhido pelo grupo Chaves era negociado com diferentes atravessadores nos municípios onde a empresa possuía fazendas. A Repórter Brasil teve acesso a notas fiscais sobre os negócios destes intermediários. Os documentos confirmam que, à época do resgate, ao menos duas grandes multinacionais moageiras — Barry Callebaut e Olam Agrícola — figuravam entre os compradores de cacau de um atravessador abastecido por fazendas do grupo Chaves.

Procurada, a Barry Callebaut informou que o seu relacionamento com a Chaves Agrícola e Pastoril foi interrompido em junho de 2019, após a descoberta de violações ao seu código de conduta para fornecedores.

A Olam Agrícola não comentou o uso de mão de obra escrava na sua cadeia de fornecedores nem disse se tomou providências a respeito do grupo Chaves. Declarou, no entanto, possuir sistemas de monitoramento para proteger os direitos humanos.

A Mondelez, dona da Lacta, reconheceu a dificuldade de se estabelecer boas condições de trabalho nas lavouras. Já a Nestlé afirmou que compra o cacau diretamente das empresas de moagem. As duas fabricantes de chocolate dizem repudiar as más práticas trabalhistas.

Em 2018, apenas alguns meses após o flagrante, a Fazenda Diana e outras fazendas do grupo Chaves receberam o selo de boas práticas da UTZ, principal certificadora internacional de sustentabilidade trabalhista e ambiental do setor. O certificado, contudo, não está mais válido.

Questionada sobre a data e os motivos do desligamento, a UTZ não respondeu.

Trabalhadores relatam rendimento inferior a meio salário mínimo

Por conta do flagrante, a Chaves Agrícola e Pastoril foi incluída, em abril de 2020, na "lista suja" do trabalho escravo, cadastro oficial do Ministério da Economia que expõe empregadores flagrados utilizando mão de obra em condições análogas à escravidão. Antes de entrar na lista, empregadores se defendem em duas instâncias administrativas na Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do ministério.

Esta não foi a primeira vez que a empresa enfrentou denúncias trabalhistas. Em 2016, o MPT obteve na Justiça o bloqueio de contas do grupo Chaves após 120 trabalhadores serem mantidos em condições degradantes de moradia em suas fazendas. Representantes do grupo foram procurados por telefone e email, mas não atenderam a reportagem.

Uma outra fiscalização no sul da Bahia flagrou, em dezembro de 2018, violações trabalhistas que alcançavam mais uma vez as grandes indústrias do setor. Auditores federais e o MPT encontraram trabalhadores vivendo nas fazendas Boa União e Sete Voltas sem acesso a banheiro ou água tratada. Lavradores relataram que recebiam rendimentos inferiores à metade do salário mínimo.

O cacau colhido nas duas propriedades, segundo o MPT, era negociado com um mesmo atravessador. Em depoimento ao órgão, o intermediário afirmou que comercializava o produto para Barry Callebaut, Cargill e Olam.

Atravessadores negociam salários baixos e vendem produção para grandes empresas - Sidney Oliveira/Agência Pará - Sidney Oliveira/Agência Pará
Atravessadores negociam salários baixos e vendem produção para grandes empresas
Imagem: Sidney Oliveira/Agência Pará

Dono da terra é obrigado a garantir condições mínimas de moradia e infraestrutura

A Repórter Brasil não conseguiu localizar os proprietários das fazendas Boa União e Sete Voltas. Já a Cargill informou que, desde 2019, não adquire mais cacau do intermediário em questão. A multinacional afirmou ainda que quer aumentar as compras de cacau diretamente nas fazendas, que representam hoje apenas 20% do volume adquirido. "Nos últimos dois anos, a Cargill abriu mais quatro armazéns espalhados pelo Brasil com o objetivo de ampliar as compras diretas", diz a empresa.

Questionada, a Barry Callebaut não quis comentar o caso, alegando que não divulga informações sobre os seus fornecedores. A Olam também não se manifestou.

Assim como no caso da Fazenda Diana, os trabalhadores dessas duas propriedades também conseguiram o serviço por meio dos chamados "contratos de parceria". São arranjos previstos em lei nos quais o dono da propriedade fornece um lote de terra para o lavrador — chamado de "parceiro" — manejar os pés de cacau ao longo do ano.

Ele não tem direito a salário, mas, ao fim da safra, fica com um percentual do cacau colhido sob seus cuidados — geralmente 50% ou menos.

Porém, a legislação prevê também que o dono da terra é obrigado a garantir condições mínimas de moradia e infraestrutura ao "parceiro", além de autonomia nas negociações. Em alguns casos, o fazendeiro impõe ao lavrador para quem ele deve vender o cacau. Com pouca margem de negociação, os lucros do arranjo não alcançam uma remuneração adequada à subsistência.

Praticamente toda a produção de cacau na Bahia é feita por meio desses contratos, o que leva às violações trabalhistas no setor, explica o procurador do MPT Ilan Fonseca de Souza. "A parceria esconde o vínculo empregatício. O fazendeiro consegue sua produção sem ter de contratar ninguém", afirma o procurador. É por isso que a fiscalização classifica muitos contratos como fraudulentos — feitos para mascarar uma relação que, na verdade, é a de patrão e empregado.

Para frear as violações nas lavouras de cacau, Souza defende a responsabilização das gigantes do setor, já que a aquisição do produto abastece um mercado extremamente concentrado. Essa possibilidade, no entanto, esbarra na dificuldade para rastrear a origem das amêndoas.

Por meio de contratos informais, os atravessadores juntam sacas de diversas fazendas a fim de revender o produto em volume maior para as beneficiadoras.

Das três multinacionais que negociaram com os atravessadores envolvidos em violações trabalhistas, apenas a Barry Callebaut comentou a dificuldade de rastrear a origem das amêndoas. A empresa promete certificar seus intermediários, mas o sistema não está pronto e não há prazo para entrar em funcionamento.

Veja a reportagem completa aqui. A íntegra das respostas das empresas pode ser lida aqui.