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Brasil tem de mudar a maneira como vê as Farc, diz Ingrid Betancourt

Thiago Chaves-Scarelli

Do UOL Notícias<br>Em São Paulo

03/11/2010 18h31

Ingrid Betancourt é talvez a refém mais famosa que já passou pelas mãos das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Sua projeção como candidata presidencial e sua nacionalidade francesa garantiam para a guerrilha importante visibilidade midiática e poder de barganha, e faziam de Betancourt uma refém valiosa demais para se perder. Nessa condição, acabou vivendo mais de seis anos em meio à floresta tropical colombiana, sob a vigilância constante de um grupo “terrorista”, como afirmou em entrevista exclusiva ao UOL Notícias nesta quarta-feira (3).

Hoje, dois anos depois da operação de inteligência militar que a resgatou, Betancourt pode usar brincos e não precisa mais pedir autorização para ir ao banheiro. Mas não abdicou completamente da companhia da guerrilha: fora da floresta, escreveu um relato de mais de 550 páginas sobre o período que esteve refém, em um exercício de revisitação do passado que qualifica como “terapêutico”.

De passagem pelo Brasil para divulgar a obra, Betancourt comentou sobre a relação que manteve com seus captores durante aqueles anos, questionou o tipo de “comunismo” praticado pela guerrilha e afirmou que o Brasil precisa mudar de postura e classificar o grupo como terrorista.

“Se há uma organização que sequestra, que manda bombas em igrejas e escolas, pois estão fazendo terrorismo e quem faz terrorismo é terrorista. Ou seja... Eu acredito que as Farc devem ser consideradas terroristas”, afirmou.

Leia a entrevista a seguir:

UOL Notícias: Depois de tudo o que a senhora passou, seria compreensível se escolhesse evitar o tema do sequestro. Mas, ao contrário, a senhora escreveu um livro a respeito e concorda em conceder entrevistas. Por que a senhora optou por se abrir para contar a história ao invés de apenas deixá-la para trás?

Ingrid Betancourt: Eu acredito que as duas opções são válidas. É válido não voltar a se referir ao tema, como parte de um processo de recuperação de todos os traumas que pode ter havido. Sei que para muita gente isso é muito difícil. Mas acredito também que é válido, pelas mesmas razões, falar sobre o tema. Creio que também é terapêutico. No meu caso, o que foi muito evidente é que quando eu voltei à liberdade não podia falar disso, nem com a minha família, nem com ninguém. E mesmo depois de ter escrito o livro, quando falo de certos momentos do cativeiro, as emoções voltam muito fortemente.

Então a razão para contar é simplesmente poder compartilhar algo que foi muito doloroso, porque penso que pode ser útil para outras pessoas que também vivem momentos dolorosos em suas vidas. Provavelmente também para dar um sentido ao que vivi, não deixá-lo perdido ou senti-lo como um tempo desperdiçado. E pela responsabilidade que senti de dar testemunho de todos estes anos.

Reprodução/UOL
O acampamento entrava numa atividade febril. Uns checavam os nós de suas barracas, outros iam correndo recolher a roupa que secava num quadrado ensolarado, alguns, mais previdentes, iam aos chontos, para o caso de a tempestade se prolongar. Eu olhava para aquela agitação com um nó na barriga de tanta angústia, rezando para que Deus me desse forças para ir até o fim. "Esta noite estarei livre." Repetia essa frase sem parar, para não pensar no medo que retesava meus músculos e os esvaziava de sangue, enquanto fazia a muito custo os gestos mil vezes previstos em minhas horas de insônia: esperar que anoitecesse para construir o boneco, dobrar o grande plástico preto e enfiá-lo dentro da bota, abrir o pequeno plástico cinza que me serviria de poncho impermeável, verificar se minha companheira estava pronta. Esperar que a tempestade caísse

Trecho do livro "Não há silêncio que não termine: Meus anos de cativeiro na selva colombiana", de Ingrid Betancourt. Companhia das Letras, 2010

UOL Notícias: A senhora teve de aprender a lidar com a floresta. Estava cercada de animais estranhos o tempo todo, de dia e de noite. Ao mesmo tempo, conta que uma vez chegou a preparar um sushi no meio da selva, cortando fatias finas da carne de uma piranha para comê-la crua. Como era sua relação com a natureza?

Ingrid Betancourt: Na floresta, a natureza é agressora. Constantemente, você está com pragas. Ou seja, a pele é um lugar de dor. Eu acredito que em todos os anos não houve um só dia que não me coçasse ou que algo não me doesse fisicamente, o tempo todo há um incômodo. Mas isso não é nada comparado à crueldade humana. E como a perspectiva é constante... chega um momento, que para fim foi uma revolução, em que a natureza se tornou um refúgio. Apesar de todos os medos e apesar de todos os perigos era melhor estar na selva, em particular livre na selva, do que estar cativa na selva.  

UOL Notícias: Nota-se em seus relatos que coisas simples acabam ganhando outro valor, um xampu, por exemplo, alguma coisa para comer ou para calçar. É possível perceber que mesmo naquela situação excepcional havia uma preocupação com a dignidade, e havia limites que a senhora não queria ultrapassar. Na condição de refém, o que mais lhe incomodava?

Ingrid Betancourt: Tudo compunha uma situação de tormento. Mas a dor física se esquece, e aos incômodos físicos a gente se adapta. Que não exista xampu para lavar o cabelo ou que exista haja um banheiro... por mais difícil que seja, a pessoa termina se adaptando, porque não há outra solução. Mas há situações emocionais e situações morais às quais não devemos nos adaptar. E quando não se tem muita possibilidade de escolha, porque não se tem liberdade, a fronteira se torna muito pequenininha e a única coisa que se pode fazer é proteger... a alma. E eu acredito que, ao final, é o único que se deve proteger. É a coisa mais sensível e a única que tem importância.

UOL Notícias: Isso fica claro quando os comandantes tentam dar números aos reféns, e a senhora se recusa a ter um número e enfrenta verbalmente o guerrilheiro. Não lhe dava medo enfrentar alguém que poderia matá-la a qualquer momento?

Ingrid Betancourt: O medo está aí. Eu me recordo que nessa situação na qual pedem que nos numeremos, e meus companheiros vão falando seus números e chega minha vez e eu não o faço, me lembro do medo de me dar um número, e ao mesmo tempo lembro da incapacidade de simplesmente deixar que isso acontecesse. Nesse momento eu não calculei as consequências. Simplesmente para mim era impossível aceitá-lo.

As consequências foram, curiosamente, diferente das que eu imaginei que seriam, porque encontrei aceitação por parte do comandante, que deixou que não tivéssemos números. Mas não encontrei essa solidariedade por parte dos meus companheiros, que se ofenderam, porque pensaram que minha reação era uma reação arrogante e não entenderam que era simplesmente a impossibilidade de jogar um jogo que é traumático.

Mas isso se deu em muitas ocasiões. Momentos em que havia que pedir algo, em particular remédios, porque estávamos doentes. Para obter medicamentos, muitos de meus companheiros aceitaram fazer trocas, por cigarros, por exemplo. E não aceitar esse tipo de comportamento é doloroso, porque obviamente era sofrer fisicamente as consequências, mas de alguma maneira isso ajudou na maneira como eu queria me relacionar com os guerrilheiros.

Reprodução/UOL
Acredito no diálogo como melhor opção, mas para dialogar é preciso que existam duas partes. E o que creio hoje é que as Farc não têm interesse em diálogo. Eles se transformaram e deixaram de ser uma organização com ideais políticos. São uma organização armada, com uma hierarquia cujo objetivo é manter seu modus operandi, sua maneira de viver

Ingrid Betancourt, ex-candidata presidencial que passou seis anos como refém das Farc, em entrevista ao UOL Notícias

UOL Notícias: Ainda a respeito das relações com os guerrilheiros, se percebe pelo livro que houve um contato pessoal, pelo convívio comum de muitos anos. Como a senhora vê as diferentes motivações e diferentes personalidades daqueles que lhe mantiveram presa? Como a senhora vê as possibilidades de escolhas dos guerrilheiros?

Ingrid Betancourt: É importante diferenciar a organização das Farc e o seu secretariado, que tem toda a liberdade para tomar as decisões: de sequestrar alguém ou não sequestrar, de negociar ou não negociar, de libertar. Os chefes tinham toda a liberdade. Mas a tropa, os guerrilheiros, os rapazes que estavam de guarda, eu sempre penso que eles estavam presos em uma armadilha. Estavam em uma situação humanamente muito complicada, porque tinham se metido em uma organização que lhes exigia atuar de uma maneira que muitas vezes não concordavam. Sempre vi uma contradição neles mesmos, porque eles se metem achando que vão fazer a revolução, que são os mocinhos do filme, e terminam sendo o horror, e veem a si mesmo atuando de uma maneira que é degradante, cruel, humilhante, sádica. Se pudessem escolher escapar conosco, seria a um grande custo, com o risco de que os matassem, assim como fariam conosco. Mas a decisão de ser cruel ou não ser cruel era uma decisão que eles tinham.

E a questão é por que a maioria, a grande maioria, com exceção de um ou dois, com o passar do tempo se tornavam tão terríveis. Por que se tornavam esses monstros? E eu acho que a resposta é que o ser humano, sob certas condições, se dá autorização de tirar o monstro que há em cada um de nós.

Eles tinham armas, podiam nos matar. Não tinham testemunhas. Tinham uma hierarquia que lhes permitia pensar que estavam apenas obedecendo ordens. E tinham a pressão do grupo. E esse poder absoluto, com a possibilidade de pensar que não eram responsáveis, permitia-lhes exercer o lado escuro que havia neles mesmos.

UOL Notícias: A senhora conta que tentou conversar com os guerrilheiros sobre temas políticos, dizendo que também tinha críticas aos militares porque eram corruptos, mas recebeu como resposta que a senhora também era burguesa e também era inimiga das Farc e ponto final. Como era seu contato com os guerrilheiros nesse sentido?

Ingrid Betancourt: Era difícil porque havia uma grande ignorância sobre a realidade da Colômbia e eles estavam com o cérebro completamente lavado. Tinham um discurso pré moldado e quando lhes apresentavam alternativas de reflexão, recusavam-nas de pronto. Por exemplo: uma das coisas que diziam nas Farc era que o homem nunca tinha estado na Lua, que era uma manipulação dos americanos, que eram imagens feitas em estúdio e que o homem nunca tinha estado na Lua.

Esse era o tipo de reflexão que se dava, e dessa maneira era com tudo, com o grande e o pequeno. Se alguém lhes dizia que na Colômbia há quem vote, alguns votam porque lhes compram o voto mas há outra parte da população que vota livremente, há voto de opinião, eles negavam o assunto , diziam que as eleições estavam compradas, não há democracia etc. O que não é verdade. Colômbia tem uma democracia. Não é perfeita, obviamente, mas tem uma democracia. Quando se via as pesquisas e se via o rechaço às Farc, que é muito grande, diziam que as pesquisas eram manipuladas. Óbvio que as pesquisas estão manipuladas na Colômbia, mas óbvio também o rechaço com as Farc é imenso. Eu não via neles honestidade intelectual.

UOL Notícias: A imprensa, a guerrilha e seus companheiros marcaram muito o fato de que a senhora é franco-colombiana. Imagina que se não fosse francesa ou não fosse política, teria um tratamento diferente? Quando por exemplo, tentava fugir e era capturada, imaginava que tinha uma certa "imunidade diplomática"?

Ingrid Betancourt: Nas Farc “imunidade diplomática” não existe (risos). Eu creio que em algum momento, as Farc decidiram que éramos um troféu e que era importante nos manter, porque enquanto estivéssemos aí -- não apenas eu, outros também -- poderiam ter uma exposição midiática que nunca haviam tido. Eu acho que por isso quando me recapturaram não me mataram, porque eu sei que mataram outros companheiros. Então eu penso que nesse sentido o custo de executar-me era alto demais. Mas também acho que em algum momento tiveram a percepção de que se eu morresse de uma doença, também poderia ser uma maneira de criar uma crise diplomática com o governo da Colômbia, porque poderiam culpabilizar o governo dizendo: "vocês não negociaram, não quiseram salvá-la e ela morreu". Acho que isso tudo era avaliado.

UOL Notícias: Antes do sequestro, a senhora defendia o diálogo com as Farc. Ainda vê o diálogo como o melhor caminho?

Ingrid Betancourt: Acredito no diálogo como melhor opção, mas para dialogar é preciso que existam duas partes. E o que creio hoje é que as Farc não têm interesse em diálogo. Eles se transformaram e deixaram de ser uma organização com ideais políticos. São uma organização armada, com uma hierarquia cujo objetivo é manter seu modus operandi, sua maneira de viver. Porque os comandantes conseguiram formar uma organização que consegue arrecadar dinheiro com o narcotráfico, podem comprar armas e podem manter o poder em zonas do território colombiano com condições de vida que, para eles, são extraordinárias. Condições de poder, de definir sobre a vida e a morte de milhares de pessoas. Ter uma tropa que são escravos, que fazem o que eles mandam, e são fazem vão para o conselho de guerra. Com a possibilidade de considerar a si mesmos como reis dentro de sua possibilidade de ação. Isso muda a psicologia das pessoas. Então eu acho que hoje em dia, as Farc não estão interessadas em diálogo.

Assim com tampouco as vi interessadas em ter uma reflexão política, em ter uma agenda política, em ter uma proposta política para a Colômbia de hoje. As Farc não conhecem a Colômbia, não sabem o que é a Colômbia. Não conhecem o sistema político, como funcionam as eleições, qual é o poder do presidente, qual o pode econômico dos industriais, não sabem como atua a imprensa. Para uma organização que "pretende" ter uma influência política em um país e desconhece todo o funcionamento político do país -- para mim foi e segue sendo uma contradição fundamental entre o que eles dizem que são e o que eu vi que eles eram.

Mesmo dentro de seu comunismo... Eles se dizem guerrilha comunista -- eu não vi comunismo aí, comunismo ideológico. Vi stalinismo, que é diferente, vi uma relação entre os guerrilheiros de desconfiança, de vigilância, de delação, uma situação muito complicada entre os guerrilheiros mesmos, para ter cuidado, que estavam sendo observados e podiam ser delatados, desconfiança uns dos outros. Mas não vi generosidade e não vi por exemplo os comandantes tendo interesse de que o bem-estar que o comandante podia ter fosse um bem-estar compartilhado com a tropa. Vi comandantes sempre interessados em ter privilégios. Sempre. É a natureza humana.

UOL Notícias: O Brasil não considera as Farc como grupo terrorista, e um dos argumentos para isso é que essa classificação compromete o diálogo. A senhora acredita que o Brasil deveria mudar a maneira como vê as Farc?

Ingrid Betancourt: Acredito que tem de mudar tudo. As pessoas e as organizações não são o que pretendem ser, elas são o que são. Se há uma organização que sequestra, que manda bombas em igrejas e escolas, pois estão fazendo terrorismo e quem faz terrorismo é terrorista. Ou seja... Eu acredito que as Farc devem ser consideradas terroristas. Agora, segunda mudança: é preciso negociar com terroristas. Não se pode dizer que porque são terroristas então não se pode negociar. Ao contrário: porque são terroristas, é necessário entrar em um diálogo, que permita mudar a situação. Creio que são duas maneiras de enfrentar o problema que são complicadas. Porque se a questão é dialogar, a questão deve ser dialogar sabendo quem é quem. Mas não se pode desconhecer a natureza de uma organização sob o pretexto de poder dialogar. Isso me parece muito perigoso.

UOL Notícias: Desde que saiu da floresta colombiana, como viveu estes últimos dois anos? O que mudou na sua vida?

Ingrid Betancourt: Muitas coisas mudaram: a definição de mim mesma, a definição de minhas prioridades, o modo de lidar com o tempo, e meu modo de viver. Sou uma pessoa desprendida de muitas coisas hoje em dia... apegada a outras, mas  creio que na floresta me tornei uma pessoa mais simples.

UOL Notícias: A senhora pensa em continuar na política?

Ingrid Betancourt: Eu tenho um problema com a Colômbia hoje, uma relação de amor e ódio. Amor porque adoro meu país, e ódio porque Colômbia reagiu contra mim de uma maneira muito violenta, e me obrigou a repensar minha relação com o país. Mas não acho que se deva dizer "não, nunca", porque a vida dá voltas, e de repente nos vemos em uma situação nova, nós mesmos mudamos e um dia podemos dizer "aceito um novo desafio". Mas neste momento, eu sei que não.