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Diretor da Médicos Sem Fronteiras aponta descaso de ONGs e comunidade internacional no Haiti

Leandro Prazeres

Especial para o UOL <br> Em Porto Príncipe (Haiti)

15/12/2010 17h19

O diretor de operações da organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras (MSF), Stefano Zanini, encarna bem o clima de “Babel” que se vive em Porto Príncipe. Ao cumprimentar a reportagem, ele logo pergunta: “Você quer entrevista em espanhol, inglês, francês, italiano ou português?”. Os idiomas ele aprendeu durante suas jornadas em diferentes países, inclusive o Brasil, onde viveu durante alguns anos.

Ao contrário do que se pode imaginar, o homem que comanda mais de 4,5 mil pessoas no atendimento de saúde do Haiti não é médico, mas economista. Zanini está há um ano e meiono país e, por mais idealista que o chefe de uma ONG possa parecer, ele desabafa: “Aqui, a gente acaba perdendo a capacidade de se surpreender. E isso é terrível”.

Em entrevista exclusiva ao UOL Notícias, Stefano Zanini disparou acusações. Disse que a maioria das ONGs foi irresponsável em relação à cólera, que a comunidade internacional não tem interesse na criação de um sistema de saúde gratuito no Haiti e comparou o país caribenho a um barco naufragando: “O casco está cheio de buracos. Quando se tampa um, começa a vazar água por outro”, diz.

UOL Notícias - Como está a epidemia de cólera neste momento?

Stefano Zanini - Houve uma redução no número de casos da doença, mas está havendo um movimento de aumento da letalidade. Menos pacientes, mais mortos. As pessoas estão morrendo muito rapidamente, muitas vezes porque não conseguem chegar a tempo aos centros de atendimento que foram montados. Esse aumento de letalidade está acontecendo em Porto Príncipe, em Cabo Haitiano, mas principalmente no Sul do país.

Houve aumento da mortalidade durante os dias de protestos da semana passada. A crise política tem atrapalhado o trabalho de vocês?

Não sabemos dizer ao certo, mas acreditamos que houve certa interferência, sim. Algumas vezes, o paciente ia a um centro de tratamento e por conta dos conflitos, o centro estava fechado. Daí ele ia para outro, e estava fechado também. Tentamos nos antecipar aos distúrbios, mas a verdade é que houve um aumento da mortalidade durante os conflitos.

No início da epidemia, o senhor chamou atenção da comunidade internacional sobre os riscos de uma tragédia ainda maior. Hoje, como o senhor analisa a resposta que foi dada à epidemia?

Mais de 100 mil pessoas já contraíram a doença. Nós, da Médicos Sem Fronteiras, atendemos 60% dos casos. Os outros 30% foram atendidos pela cooperação cubana. Agora, aqui vai a minha pergunta: como é que apenas duas instituições ficam responsáveis por atender 90% dessa epidemia? Onde é que estavam as outras organizações? Aqui no Haiti, está a elite das organizações não-governamentais. Se fossem organizações pequenas, com poucos recursos, eu não diria nada. Mas aqui estão as mais ricas e poderosas organizações não-governamentais do mundo. Não acredito que foi falta de dinheiro. O cólera é muito fácil de tratar. Não é o Ébola.

Então o que teria motivado essa resposta lenta?

Na minha opinião, eu considero essa atitude irresponsável. Foram necessárias seis semanas e 1,5 mil mortes para que os outros atores começassem a atuar mais fortemente no combate à doença. A impressão que eu tenho, quando converso com os chefes delas, é de que o cólera “escapou” à percepção deles. Era como se dissessem: - Ãh???  Cólera...pois é, mais um problema, né? Mas nós já estamos cuidando de tantos outros problemas.

E hoje, como está essa resposta?

Já existem muitos outros atores atentos ao cólera. Mesmo assim, temos um problema. Praticamente não há mão de obra. Nós temos 4 mil haitianos trabalhando conosco. Quando veio o terremoto, boa parte da mão-de-obra da área de saúde acabou fugindo para os Estados Unidos ou Canadá. Outra parte morreu. A estrutura universitária ficou colapsada. E se formos contratar os que restaram nas vilas mais distantes de Porto Príncipe, vamos acabar deixando essas comunidades sem assistência.

O senhor disse que a elite das ONGs está no Haiti. A ONU também está por meio da Minustah (Missão das Nações Unidas de Estabilização do Haiti). Com tanta “boa intenção”, porque as coisas parecem não dar certo?

Mas o que é dar certo? Bom...a gente está salvando vidas. Desse ponto de vista, está dando certo. Mas o fato é que não podemos ficar fazendo sempre a mesma coisa. Somos uma entidade de ajuda humanitária. Não podemos ficar ajudando aqui para sempre. Vamos ter que sair uma hora. Mas e quando sairmos? O que vai acontecer? É preciso que se construa um sistema de saúde pública no Haiti.

Mas o que está impedindo que isso seja feito?

Eu tenho conversado com o ministro da Saúde do Haiti sobre isso e ele me disse o seguinte: que ele gostaria de criar um sistema de saúde gratuito para o Haiti, só que ele não pode falar isso publicamente. Ele diz que se ele falar isso publicamente, os doadores internacionais vão desaparecer. Ele diz que os doadores perguntam: “Quanto você precisa? Cem milhões de dólares? Tudo bem, está aqui!”. Mas ele diz que se disser que vai montar um sistema gratuito de saúde, os dólares vão desaparecer. A comunidade internacional não parece estar interessada nisso.

E o governo haitiano? Qual o tamanho do seu poder de decisão?

Veja bem...60% do orçamento do Haiti é proveniente de doações internacionais. Qual o poder decisório de um Estado cujo orçamento tem 60% vinculado a doações? O Haiti é república das ONGs. Há muito mais interesse em construir hospitais, por exemplo, do que em mantê-los funcionando. O Haiti é um ótimo lugar para construir coisas. Tenho cobrado que parte dos recursos que vem para a saúde sejam destinados a obras de infraestrutura como latrinas e sistemas de saneamento básico. Isso sim vai dar resultado no longo prazo.

No próximo dia 12 de janeiro, se completará o primeiro aniversário do terremoto que devastou o Haiti. O que mudou de lá para cá?

Aumentou a confusão. Veja...muito do que se prometeu, não se cumpriu. Prometeram US$ 11 bilhões em 10 anos. Até agora, não se mobilizou nem 10% do valor previsto.A reconstrução ainda não começou. Apenas 2% do entulho das casas que desmoronaram foi recolhido. Mais de um milhão de pessoas ainda vivem em barracas em mais de 1,3 mil campos de desabrigados, dos quase 500 não tem assistência de qualquer agência. O Haiti é como um navio que está naufragando. O casco está cheio de buracos. Quando se tampa um, começa a vazar água por outro.