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"Se não fizermos nada, incentivamos a islamofobia", diz muçulmano brasileiro

Muçulmanos brasileiros oram na Mesquita Brasil, no Cambuci, centro de São Paulo - Reinaldo Canato/UOL
Muçulmanos brasileiros oram na Mesquita Brasil, no Cambuci, centro de São Paulo Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Marcelo Freire e Vinícius Boreki

Do UOL, em São Paulo e Curitiba

03/12/2015 06h00

Um simples véu cobrindo a cabeça, chamado hijab, é ao mesmo tempo um símbolo da fé e da preocupação das muçulmanas brasileiras, especialmente após os atentados em Paris que deixaram 130 mortos. Isso porque o hijab, em tese, as identificam como adeptas do islamismo --o que, segundo o pensamento de algumas pessoas que buscam alvos para espalhar ódio e intolerância, é sinônimo de terrorismo.

Na última segunda-feira (23), Luciana Schmidt Velloso e Paula Zahra relataram ter sido vítimas, respectivamente, de uma pedrada e uma cusparada nas ruas de Curitiba (PR), por serem muçulmanas. Isso sem contar os xingamentos comuns, relatados pela comunidade há algum tempo e intensificados após os ataques ao jornal francês “Charlie Hebdo”, em janeiro.

A orientação geral das entidades islâmicas do Brasil é que as vítimas do preconceito não deixem de relatar os casos à polícia, Ministério Público ou outro órgão competente. “É dolorido, mas necessário. Se não fizermos nada, estaremos incentivando a islamofobia”, afirma Gamal Oumairi, diretor-religioso da Sociedade Beneficente Muçulmana do Paraná e membro do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial. “Dizemos aos adeptos que sempre reajam da melhor maneira possível e, se a outra pessoa persistir, prestar queixa, frisando que é crime de intolerância religiosa, não injúria ou outro crime”, diz Sami Isbelle, da Sociedade Beneficente Muçulmana do RJ.

Por outro lado, segundo o xeque Rodrigo Oliveira Rodrigues, da Mesquita do Pari, de São Paulo (SP), existe uma atenção constante para que se detecte qualquer indício de extremismo no discurso ou no comportamento dos fiéis brasileiros. “Somos contra qualquer discurso de violência, inclusive feito por muçulmanos. Se soubermos de alguém com essa linguagem, denunciaremos à polícia imediatamente.”

Medo e preconceito

Uma população cujo número de adeptos no Brasil ainda é incerto --o Censo de 2010 registra cerca de 30 mil muçulmanos no país, mas a Federação das Associações Muçulmanas já a estipula em mais de 1 milhão-- se une agora para denunciar crimes cometidos contra os fiéis, esclarecer pontos relacionados ao islamismo e, repetidamente, se dissociar de grupos como o autodenominado Estado Islâmico, que utilizam a religião para justificar atos terroristas.

“Infelizmente, após esse tipo de atentado, algumas pessoas que não têm muito conhecimento associam isso ao Islã. A mídia também tem dado destaque à palavra Estado Islâmico, e isso acaba ficando no subconsciente dessas pessoas, que nos agridem de forma verbal ou até física”, diz Sami Isbelle.

“Não é nem Estado --é uma organização terrorista-- e nem Islâmico, pois vai contra os princípios do islamismo”, acrescenta o xeque Rodrigues. “As pessoas acabam achando que o grupo representa o Islã e que todos os muçulmanos são recrutas. Pagamos uma culpa por algo que repudiamos. Somos vítimas também. O Estado Islâmico ataca mesquitas da Arábia Saudita, do Iêmen, Iraque, Turquia, Tunísia, no Líbano, mas não é tão notícia como quando acontece com os europeus”, diz o xeque.

"É como culpar o católico pela Inquisição"

Segundo o xeque Rodrigues, o olhar desconfiado das pessoas com os islâmicos se tornou rotineiro. “O pessoal sai da fila do supermercado, se afasta, seguranças às vezes nos perseguem, cria-se esse sentimento de medo. Há relatos de pedras atiradas, ofensas, principalmente contra as mulheres, porque as pessoas acham que o Estado Islâmico faz o que a religião prega. Mas é o mesmo que culpar um católico pela Inquisição [grupo da Igreja Católica que, na era Medieval, combatia os hereges].”

Uma das duas agredidas em Curitiba, Paula Zahra evita pegar o ônibus em Curitiba por medo de agressões. “Quando pego, procuro ficar perto do motorista. E, normalmente, não pego o ‘expresso’ [que circula pelas faixas exclusivas] para evitar problemas”, conta. Seu filho, de 9 anos, não foi à aula nos últimos dias devido a esses problemas. “Seus colegas dizem que a mãe dele é uma mulher-bomba”, relata.

Oumairi, da Sociedade Beneficente Muçulmana do Paraná, relata que o preconceito também está nas situações burocráticas do dia a dia. “Nesta semana, uma irmã teve que brigar para fazer a foto de sua carteira de habilitação com o véu. Essa é uma conquista que tivemos há dois anos no Paraná, mas ainda é preciso justificar.”

Esclarecimento e solidariedade

A segunda frente em que as instituições islâmicas trabalham é no esclarecimento sobre a religião, se dissociando dos radicais que pregam a violência contra os não muçulmanos --no caso do Estado Islâmico, por exemplo, contra todos que não sejam sunitas ou não sigam as regras de conduta determinadas pelo grupo.

“Esse grupo é composto por mercenários, fanáticos, cuja orientação não está fundamentada no sagrado Alcorão. É realmente importante conhecer mais sobre o Islã, pois não se pode criticar sem conhecer profundamente os preceitos, o que o livro sagrado ensina”, diz Nasser Fares, presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana e representante da Mesquita Brasil, que fica no bairro paulistano do Cambuci.

“Estamos proporcionando o acesso às informações corretas para que as pessoas tirem suas dúvidas e compreendam mais sobre a religião. Também ficamos perplexos. Não sabemos quem criou o Estado Islâmico, quem o financia, quem o apoia. É preciso pesquisar a origem para entender quais os reais interesses para dar um basta a tudo isso”, afirma Fares.

Essa busca das pessoas para conhecer o islamismo, por outro lado, tem se transformado em um dos fatores que estimulam a conversão para a religião, segundo Fares, o que é motivado também pelo ambiente de tolerância religiosa que é visto no Brasil, apesar desses casos de islamofobia. “Aqui todas as religiões encontram espaço e podem se manifestar livremente. Este ambiente de tolerância prevalece sobre qualquer opinião ou manifestação negativa”, diz.

“As pessoas começam a querer ir para a mesquita para entender se esse tipo de violência tem a ver com o Islã. E elas recebem material de leitura que mostram que esses atos não correspondem aos princípios islâmicos”, afirma Sami Isbelle, que também relata o número de mensagens de solidariedade de não muçulmanos que criticam a islamofobia e o ataque à religião.

“É um fator novo e está dando um conforto para nós. As pessoas ligam, mandam mensagem e até vão para a mesquita dizer que sabem que não temos nada a ver com terrorista. Quando essas vozes começarem a se destacar em relação às que atacam, a islamofobia vai diminuir. Até porque o brasileiro é um povo que não gosta de injustiça e tem como característica a solidariedade. A gente sempre conviveu bem nesse sentido”, finaliza Isbelle.