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Ex-guarda de Guantánamo conta como é a vida na prisão: "Uma paródia do sistema de Justiça"

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

06/03/2017 04h00

O veterano americano Andrew Turner trabalhou em Guantánamo, a prisão em que os EUA mantêm presos acusados de ligação com terrorismo, por nove meses. Ex-voluntário para trabalhar na detenção de segurança máxima, ele é hoje uma das vozes que criticam o presidente Donald Trump não só por manter a prisão ativa, mas principalmente pela defesa do uso da tortura.

Em entrevista ao UOL, Turner relatou a sua experiência como militar na prisão da base americana em Cuba. Para ele, a "detenção indefinida continuada em Guantánamo sem o julgamento para tantos presos é uma paródia do sistema de Justiça".

Veja trechos do depoimento dado por Turner:

"Me voluntariei para trabalhar em Guantánamo em 2009, quando o ex-presidente Barack Obama assinou a ordem executiva fechando a prisão. Queria fazer parte do fechamento daquele lugar e ajudar a encerrar esse capítulo da bagunça dos EUA. Eu não imaginava que ela não seria fechada.

Trabalhei em Guantánamo como guarda, mas não posso dar detalhes do meu dia a dia por questões de sigilo. Tive um treinamento antes de ir para lá, mas foi algo muito limitado. Meu trabalho na Marinha era o de mestre de armas (uma espécie de policial da Marinha), então eu tinha treinamento para operações com prisioneiros e outras coisas que me ajudaram mais do que a preparação para atuar em Guantánamo.

Andrew Turner, ex-guarda de Guantánamo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
A média dos turnos durava 12 horas. Alguns chegavam a 14 horas, mas tive alguns poucos dias em que cheguei a trabalhar 20 horas. A rotina era trabalhar, ir para o alojamento em que vivíamos, trabalhar, alojamento. Eu ia de vez em quando para a praia para surfar ou para pescar, mas principalmente só trabalhei e dormi por nove meses.

Fiquei em Guantánamo por cerca de nove meses. Fui ferido ainda nas primeiras semanas de trabalho, tentando evitar que um preso se ferisse. Não posso falar sobre o que o levou a tentar se ferir, mas nós o tínhamos contido para que os médicos pudessem examiná-lo e ajudá-lo.

Enquanto eu segurava sua cabeça para impedir que ele se machucasse, ele repentinamente começou a dar cabeçadas no chão, esmagando a minha mão e meu pulso direito. Depois, precisei passar por uma cirurgia e acabei perdendo a maior parte dos movimentos da mão.

Acredito que qualquer pessoa tenha mínimo de empatia com outros seres humanos. Minha maior preocupação até hoje é que acredito que a detenção por tempo indefinido, sem julgamento adequado, é uma violação grosseira do direito ao devido processo.

guantanamo - Shane T. McCoy/U.S. Navy/AP - Shane T. McCoy/U.S. Navy/AP
Imagem: Shane T. McCoy/U.S. Navy/AP
Acho que o uso da tortura é abominável e completamente contra os valores dos EUA. A detenção indefinida continuada em Guantánamo, sem o julgamento para tantos presos, é uma paródia do sistema de Justiça. Sou totalmente contra as declarações de Trump sobre sua aprovação do uso desses métodos, assim como a posição dele de manter a prisão funcionando e até cogitar expandi-la. É uma situação terrível.

Nós, americanos, achamos muito fácil falar sobre direitos humanos, mas, como um todo, é muito difícil ser coerente com estas práticas. Embora todos os detidos ali possam ser culpados de crimes terríveis, não era meu trabalho ser seu juiz ou júri. Era apenas assegurar que eles fossem tratados com humanidade de uma forma justa, firme e imparcial. E fiz o meu melhor para tratá-los como pessoas, em uma situação muito problemática.

Deixei Guantánamo com o fim do período para o qual fui designado, no começo do verão de 2010. Não comecei a mostrar sinais de estresse pós-traumático até o ano seguinte. Mas, desde então, tive momentos muito difíceis com os sintomas que se desenvolveram. Deixei as Forças Armadas em 2012 por conta dos ferimentos na minha mão e do estresse pós-traumático.

A maior dificuldade que vi após deixar a carreira militar foi a volta à vida civil. É especialmente pior para veteranos com deficiência física e mental provocados por um serviço que muitos de nós não entendemos. O governo nos apoia até certo ponto. Mas muitas vezes, a comunidade de militares veteranos é usada como capital político e depois deixada de lado quando não serve mais. 

Espero que algum dia os nossos líderes políticos retomem a razão e fechem Guantánamo. Mas isso não significa que apoio a libertação dos detidos que permaneceram na prisão. Se acreditam que eles representam um perigo, devemos assegurar que eles sejam julgados em nossos tribunais e, depois, fazer o que os tribunais decidirem de acordo com o que a nossa Constituição nos diz que é um tratamento justo."