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Nascido de tragédia argentina, Ni Una Menos tenta parar mulheres por direitos e leis

Manifestação do coletivo Ni Una Menos na Argentina, no ano passado - AFP/Arquivo - 19/10/2016
Manifestação do coletivo Ni Una Menos na Argentina, no ano passado Imagem: AFP/Arquivo - 19/10/2016

Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

08/03/2017 04h00

Enquanto movimentos feministas impulsionam a realização de um dia sem mulheres em mais de 50 países, a América Latina leva às passeatas deste 8 de Março a ideia comum de "Nenhuma a Menos" (Ni Una Menos), impulsionada pelo coletivo argentino que luta contra os feminicídios. Os casos de extrema violência contra as mulheres no país fizeram com que a bandeira das argentinas se espalhasse e se transformasse no lema em defesa dos direitos das mulheres.

Em São Paulo, acontecem dois atos nesta quarta-feira: um na avenida Paulista, feito por coletivos feministas, e outro na praça da Sé, que também critica a reforma da Previdência. Outros protestos acontecem ainda no Rio e em capitais do Nordeste e do Sul do Brasil. Em comum, todos abraçam a ideia promovida pelo grupo argentino.

O primeiro evento do Ni Una Menos na Argentina ocorreu em 2015, após a morte da adolescente Chiara Páez, 14, que estava grávida quando foi assassinada pelo namorado de 16 anos, sendo em seguida enterrada no quintal da casa dos avós dele com a ajuda dos pais. 

Mas ele realmente ultrapassou as fronteiras argentinas em 2016 com a morte da jovem Lucía Perez, 16, que chocou todo o país. Lucía foi drogada, brutalmente violentada, empalada e morreu após ser levada ao hospital por dois homens, de 41 e 23 anos.

Eles lavaram seu corpo e trocaram suas roupas antes de deixá-la desacordada para atendimento médico, alegando que a adolescente teria sofrido uma overdose de cocaína. Ela morreu em decorrência dos ferimentos e da dor provocada pelo empalamento.

Após o crime bárbaro, aconteceu na Argentina a primeira greve de mulheres e até mesmo órgãos do governo dispensaram suas funcionárias para participação do ato em defesa das vítimas. 

É um protesto semelhante a este que o coletivo busca neste Dia da Mulher. Passeatas com base na ideia de "Nenhuma a Menos" já foram realizadas no México, no Peru e no Chile. A ideia é que as mulheres parem por ao menos uma hora, inclusive os afazeres domésticos. 

Agora, além da ideia comum da luta contra o feminicídio, os diferentes atos pelo mundo também levam reivindicações específicas seguindo a luta de cada sociedade.

"Feminicídio tem marcas muito fortes na América Latina"

Em entrevista ao UOL, Cecília Palmeiro, uma das coordenadoras do Ni Una Menos na Argentina, explica que o movimento hoje funciona como uma rede de assembleias, especialmente na América Latina, que agem de forma autônoma, apesar de estarem unidas pelo nome e pela ideia central: a luta contra a violência machista.

"Essa frase 'Nenhuma a Menos' remete à violência, aos assassinatos, e não só à violência doméstica. E o feminicídio tem marcas muito fortes na América Latina. Países como Brasil, a Argentina e o México têm histórias bastante marcantes de violência contra a mulher", explica Heloisa Buarque de Almeida, estudiosa da USP sobre feminismo.

A América Latina, apesar de ser uma das regiões do planeta que mais avançaram recentemente na criação de legislações para lutar contra a violência contra mulheres --ao menos 16 países da região têm leis específicas para enquadrar a violência de gênero--, ainda é marcada por casos de extrema violência e diferenças gigantescas de gênero.

Segundo estimativas da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), a cada dia morrem em média 12 mulheres vítimas da violência. A diferença salarial entre homens e mulheres na região chega, em média, a 26%, e 29% das mulheres não têm renda própria --26% recebem um salário inferior ao mínimo. Metade das mulheres em cujos lares há crianças menores de sete anos está fora do mercado de trabalho.

Um estudo publicado pelo instituto americano Pew Research em 2014 aponta que em metade dos 19 países latinos pesquisados acredita-se na afirmação de que "a mulher deve sempre obedecer ao marido". Apenas na Argentina (31%), no Chile (24%) e no Uruguai (23%), menos de quatro em cada dez adultos concordam o ponto de vista. No Brasil, 64% dos consultados defendem a obediência da mulher.

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Imagem: Natacha Pisarenko/AP - 19.out.2016

"Deixem algumas tarefas para seus companheiros"

Na visão de Heloisa, o conceito do Ni Una Menos se espalhou para os grupos feministas da região, independentemente das diferentes correntes do feminismo, por remeter diretamente aos assassinatos. "Até mesmo as pessoas que não são feministas, mas têm uma noção mínima de igualdade, sentem-se afetadas por este nível de violência e de brutalidade", diz a especialista da USP.

"Mesmo entre os mais conservadores, já que o feminismo não é só de esquerda, ficam tocados com estas histórias. A mensagem de 'Nenhuma a Menos' permite a união de diferentes grupos quando enfoca nos assassinatos."

Heloisa lembra ainda que o movimento feminista atinge não só a política formal, como a legislação e os direitos, mas principalmente a desigualdade dentro da família, nas estruturas íntimas, nas relações afetivas entre pais e filhos e na relação com a maternidade. "Na maior parte dos casos, os feminicídios estão associados com esta esfera íntima", diz.

Na Argentina, onde o grupo se originou, além dos crimes contra mulheres, o coletivo vai às ruas em defesa de direitos trabalhistas iguais. Cecília explica que a Argentina tem uma lei de feminicídio e outras que protegem as vítimas, mas que elas não são aplicadas. "Existe ainda um protocolo de aborto não punível em casos de estupro ou sob risco para a saúde e que não é respeitado", diz a ativista.

No Brasil, Marina Costin Fuser, uma das organizadoras do ato na avenida Paulista, em São Paulo, diz que a ideia é quebrar com a ideia de normalidade, de que o 8 de Março é um "dia qualquer". "Não queremos que pare tudo, até porque sabemos que isso é impossível. Será uma paralisação mais diluída e ao mesmo tempo de expressão muito forte. Afinal, são mulheres indo às ruas, se organizando e questionando", afirma.

Segundo Marina, o grupo tem enfatizado também a questão do trabalho doméstico, que para muitas mulheres é uma segunda jornada. "Deixem algumas tarefas para seus companheiros", sugere.

No Peru, a luta é pela aprovação de uma lei que descriminalize o aborto em casos de estupro, em defesa de uma lei que libere o casamento homossexual e de um novo currículo nacional que eduque as crianças com enfoque em gênero, igualdade e educação sexual, diz Karina Tamayo, porta-voz do Ni Una Menos no país andino.

"A expectativa é grande porque é a primeira vez que as mulheres peruanas se organizam para deixar os seus trabalhos em uma greve de uma hora", diz Karina.

Paramos para tornar visível a violência contra as mulheres, a desigualdade salarial e de gênero

Karina Tamayo, porta-voz do Ni Una Menos peruano

Soledad Acevedo, organizadora dos atos no Chile, lembra que as ações dependem das realidades diferentes de cada mulher.

"Nem todas podem se ausentar de seus postos de trabalho ou permanecer sem trabalhar o dia todo. Para as mulheres que se dedicam ao trabalho doméstico, sugerimos que elas deixem por algum momento a jornada diária e se reúnam com companheiras, amigas e vizinhas para discutir a luta por direitos da mulher", afirma.

A chilena lembra ainda que, ainda que as legislações latinas considerem o crime de feminicídio, estes países não incluem as manifestações de violência ou os assassinatos de mulheres como crimes de gênero, deixando muitas mortes impunes ou classificadas como homicídios simples.

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Imagem: Natacha Pisarenko/AP - 19.out.2016

Alternativa contra a guinada conservadora da região?

Em seu manifesto, o coletivo argentino afirma que vê o movimento de mulheres como uma "potente alternativa ao giro neoconservador na região e no mundo". Cecília, do Ni Una Menos argentino, explica que as políticas de enfoque conservador que vêm sendo aplicadas nos últimos anos afetam não só as vidas, mas os corpos das mulheres.

Existe uma reação conservadora forte frente ao nosso movimento emancipatório. Podemos reagir e agir juntas

Cecília Palmeiro, do movimento argentino Ni Una Menos

A chilena Soledad cita ainda o crescente aumento das bancadas evangélicas nos Congressos dos países da região, de movimentos religiosos católicos e de partidos políticos conservadores e que se colocam contra os direitos das mulheres. "Em países que estão discutindo legislações sobre o aborto, isto fica mais evidente", afirma Soledad.

Marina, da organização no Brasil, lembra que são mulheres muito jovens que participam da mobilização atual, com o apoio do uso de redes sociais.

"Hoje, mesmo os coletivos feministas que antes eram bastante marginalizados em grupos ou partidos começaram a crescer. Acredito que a questão para os impasses políticos que são colocados atualmente tem muita chance de ser solucionada por mulheres. São elas que estão se organizando agora."

Heloisa analisa que, na América Latina, as próprias instituições estatais são conservadoras, incluindo a polícia e o sistema judiciário. "É aquela história que não acontece só no Brasil, de que a pessoa vai a uma delegacia denunciar uma violência sexual e a primeira coisa que fazem é duvidar da vítima", diz a especialista.

"Quando você se lembra dos casos de agressão e assassinato, enquadrados na Lei Maria da Penha, há muitas mulheres que denunciam diversas vezes e acabam morrendo porque a Justiça e a polícia não conseguem evitar."