Ameaçados, jovens criados nos EUA lutam contra risco de deportação ao Brasil
Thaís cresceu em uma cidade bastante populosa de Nova Jersey, costa leste dos Estados Unidos. Seus pais são paraenses e têm green card (visto permanente), seu irmão mais velho casou com uma norte-americana, tornou-se cidadão do país e hoje trabalha como policial. Mas Thaís agora corre o risco de, sem sua família, ser forçada a deixar os EUA.
Essa é a situação de cerca de 700 mil jovens de diferentes nacionalidades que chegaram aos EUA de forma ilegal quando crianças, levados por seus pais. "Cheguei quando tinha 5 anos e meu irmão 12. Meus pais queriam que nós tivéssemos uma educação melhor", diz Thaís Marques ao UOL, em um português claudicante.
Aos 23 anos, ela é beneficiária do programa Daca, criado pelo governo Barack Obama (2009 - 2017) que permitiu a jovens imigrantes sem documentação, os chamados "dreamers" (sonhadores, em inglês), estudar e trabalhar no país em que foram criados e ao qual estão adaptados. O programa, no entanto, foi interrompido pela administração do presidente Donald Trump e sua cruzada contra imigrantes.
Para Thaís, como para os outros jovens, isso significa deixar toda uma vida para trás e retornar ao país em que nasceram, mas com o qual têm pouca ou nenhuma familiaridade.
Há 17 anos ela vive em Newark, Nova Jersey. Foi onde frequentou a escola e posteriormente a universidade --estudou ciências políticas na Rutgers University. Atualmente está em Nova York, trabalhando em uma incubadora de projetos sociais chamada ThePowerLab. Há alguns anos, seus pais obtiveram o "green card", mas por já ter mais de 21 anos quando a autorização saiu, ela não pode receber o documento junto com a família.
"Eu tenho família no Brasil, mas a última vez em que estive no país tinha 5 anos. Meu português não é tão bom como era antigamente. Não tenho tanto acesso à minha cultura, não tenho pessoas com quem posso conversar em português", diz.
Também assim se sente Lucas Codognolla, 27, natural de Poços de Caldas (MG) e outro beneficiário do programa. Lucas chegou aos EUA aos 9 anos --a família foi morar em Nova York, o pai passou a trabalhar com carpintaria e a mãe, limpando casas.
"Eu me lembro de chegar aqui em abril de 2000. O segundo dia que chegamos já nevou e foi a primeira vez que vi neve na minha vida. Para mim foi uma experiência bem legal", lembra. "Mas com 9, 10 anos de idade, não sabia que eu ia entrar nesse problema de estatuto migratório", conta.
Para ele, uma criança ou jovem que chega a um país estrangeiro assume muitas responsabilidades desde cedo. "Entrei na escola e não tinha muitas pessoas que falavam português, então aprendi muito rápido o inglês. Eu era a pessoa que traduzia para os meus pais quando pedíamos comida ou quando eles iam ao 'doutor', à farmácia, tudo. Era uma responsabilidade bem grande para uma criança, então assimilei muito rápido a cultura dos norte-americanos."
Lucas também se formou em ciências políticas e hoje é diretor de uma organização que auxilia imigrantes sem documentação. Ele é o mais velho de quatro irmãos. Assim como Thaís, o restante de sua família tem autorização para permanecer no país --os dois irmãos mais novos são cidadãos norte-americanos, nasceram nos EUA, e o terceiro tem visto permanente.
O que é o Daca
O Daca, sigla de Deferred Action for Childhood Arrivals ("Ação Diferida para Chegadas na Infância", em inglês), foi instituído em 2012 por Barack Obama como forma de proteger jovens levados aos Estados Unidos ilegalmente quando crianças.
Com o ato, jovens sem documentação receberam uma permissão temporária para trabalhar e cursar o ensino superior de forma legal -- sem o risco de serem deportados.
A autorização é válida por dois anos, que poderiam ser renovados. Em cinco anos, cerca de 700 mil pessoas se beneficiaram do programa. Para recebê-lo, interessados deveriam ter chegado aos Estados Unidos até 2007, com menos de 16 anos de idade e ter menos de 31 até junho de 2012. Além disso, não podiam ter antecedentes criminais.
A política foi estabelecida por um decreto do Executivo, ou seja, sem passar por debate no Congresso. Isso porque desde 2001 o Senado norte-americano tentava aprovar uma lei bipartidária que, além de fornecer os benefícios do Daca, abria o caminho para a cidadania.
A lei, nunca aprovada, foi batizada de Dream Act, acrônimo em inglês para "desenvolvimento, alívio e educação para menores estrangeiros", que forma também a palavra "sonho" -- e por isso seus supostos favorecidos foram apelidados de sonhadores.
O Daca foi um grande benefício. Quando passou, em 2012, mudou muito a minha vida. Me deu a permissão de trabalhar legalmente, pegar carteira de motorista. Eu me formei em ciências políticas."
Lucas Codognolla
Em setembro de 2017, no entanto, Trump cumpriu sua promessa de campanha e encerrou o programa, deixando novos "dreamers" sem garantia de permanência no país e também uma grande quantidade de jovens inseguros sobre sua renovação de visto.
A medida foi duramente criticada por economistas que estudam os impactos do Daca no país, entidades de direitos humanos e liberdades civis e até pelo papa Francisco.
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A intenção de Trump é que o Congresso elabore até o dia 5 de março uma nova lei de migração, que dê uma solução permanente para esses jovens, e endureça as possibilidades para imigrantes no geral no país.
Entre as mudanças pretendidas por Trump estão a liberação de bilhões de dólares para a construção do muro na fronteira com o México, a adoção de medidas mais agressivas para a deportação de imigrantes ilegais e a mudança no sistema de vistos, para priorizar "habilidades profissionais" sobre "relações familiares", como acontece hoje. Além disso, ele quer acabar com a chamada "loteria de vistos", programa de 1990 que zela pela diversidade de nacionalidades que recebem permanência para residir nos EUA.
Disputa política
Desde o dia 12 de fevereiro, o Senado tenta aprovar uma nova lei de imigração. Para ser aprovada, uma proposta precisa receber 60 dos 100 votos da casa.
A proteção aos jovens imigrantes ilegais é prioridade da agenda democrata no Congresso. Tanto que, em janeiro, o orçamento nacional foi bloqueado durante três dias, pois representantes do Partido Democrata na Câmara e no Senado se recusaram a aprovar as contas de 2018 enquanto os republicanos não garantissem a manutenção da proteção aos "dreamers". Um acordo temporário foi feito para que o governo retomasse as atividades.
Semanas mais tarde, em uma seção histórica da Câmara, a representante Nancy Pelosi, aos 77 anos, discursou durante o tempo recorde de 8 horas ininterruptas como forma de manifestar essa agenda. No discurso, ela leu cartas de sonhadores cujas famílias estão sendo divididas.
Agora o Senado debate uma nova lei dentro dos termos apresentados por Trump. Após mais de uma semana de discussão, no entanto, uma solução ainda não foi encontrada e o destino dos "dreamers" permanece incerto nos Estados Unidos, ao passo que o prazo final dado pelo presidente se aproxima. Após passar pelo Senado, a eventual proposta deve ser também aprovada na Câmara e sancionada pelo presidente.
O debate tem exaltado humores e levado milhares de pessoas às ruas para manifestarem suas opiniões e exigirem seus direitos. Entre eles, Thaís e Lucas.
Os dois fazem parte de uma coalizão nacional que batalha pela garantia dos direitos dos jovens imigrantes nos EUA -- a Dream Act Coalition. Desde que Trump colocou o programa sob ameaça, eles foram às ruas em atos diversos. Em um deles, sete "dreamers" foram detidos por alguns dias -- incluindo Erika Andiola, porta-voz do pré-candidato democrata Bernie Sandres. Na semana passada, outros 11 jovens saíram em uma caminhada de Nova York até Washington para exigir a manutenção do Daca.
Desde que deixou o Brasil aos 5 anos de idade, Thaís nunca mais voltou ao país. Lucas veio uma vez, por apenas uma semana - tempo limite concedido a recipientes do Daca. Foi quando seu avô faleceu.
Eu estou aqui há 17 anos. Eu cresci aqui, tenho educação norte-americana, falo inglês, trabalho aqui. Não é justo que a comunidade de 11 milhões [de imigrantes ilegais] não tenha proteção."
Thaís Marques
"Eu nasci no Brasil e ainda me declaro brasileiro, mas o lugar em que eu me sinto confortável não é o Brasil. Eu cresci nos EUA, socializei e assimilei a cultura aqui. Pensar na possibilidade de deixar tudo... não sei, não sei se vou poder 'navegar' no Brasil da forma como posso aqui", completa Lucas.
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