Quem é o líder de esquerda que tem promovido um banho de sangue na América Central?
O presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, é uma figura central nas últimas quatro décadas no país --seja como líder revolucionário, como presidente ou como opositor. Eleito com mais de 70% dos votos para o seu terceiro mandato consecutivo, teve seu poder abalado por protestos que já duram mais de três meses. Seu governo respondeu com brutalidade: a repressão aos manifestantes, liderada pela polícia e por milícias pró-Ortega, já contabiliza ao menos 360 mortos desde abril.
Alinhado à esquerda e de orientação marxista-leninista, Ortega, 72, já foi presidente em outras duas ocasiões. Em 2016, venceu seu terceiro mandato consecutivo --não há limite para a reeleição na Nicarágua.
Líder da FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional), comandou as ações que resultaram na derrubada do ditador Anastasio Somoza Debayle, em 1979. Naquele ano, a mudança de regime desencadeou uma guerra civil contra paramilitares apoiados pelos Estados Unidos.
Agora, os manifestantes --que a princípio criticavam a reforma da Previdência-- pedem sua renúncia e eleições antecipadas. A proposta de Ortega era reformar o sistema de seguridade social aumentando as contribuições e reduzindo os benefícios, em uma tentativa de melhorar o crescente déficit fiscal do país. O plano foi revogado, mas a medida não foi suficiente para conter a onda de protestos pelo país.
A Nicarágua é um dos países mais pobres da América Central, só estando à frente do Haiti nesse quesito --em comparação, o Brasil ocupa a 20ª posição entre os países latinos e do Caribe, segundo dados do Banco Mundial.
Organizações internacionais, como a OEA (Organização dos Estados Americanos) e a Anistia Internacional, já se manifestaram contra a crescente violência e pediram que o presidente busque um diálogo com os opositores.
Não parece ter sido a opção adotada por Ortega, que endureceu a repressão em Masaya, um dos berços da Revolução Sandinista, para retomar o controle da região.
"O que vemos na Nicarágua é um complexo cenário no auge de numerosos protestos sociais, permeados por violência e repressão política. Interessante notar que o recorrente discurso de 'país mais seguro da América Central' (baseado principalmente em dados policiais e taxas de homicídios) e análises apontando desinteresse político e resignação por parte da população foram drasticamente modificados com as ações dos últimos meses", afirma o historiador Fred Maciel, membro do Grupo de Pesquisa Intelectuais e Política nas Américas da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
Aceno a grandes empresas garantiu reeleição
Ortega comandou o país até 1990, quando foi derrotado nas urnas. Voltou ao poder em 2007, depois de se reinventar como um perfil socialista mais moderado e fazer um aceno a grandes empresas --um movimento semelhante ao realizado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil em 2002, com a Carta aos Brasileiros. Em seguida, Ortega aproximou-se também da Igreja Católica.
O historiador da Unesp lembra ainda que tanto Lula quanto o presidente nicaraguense fizeram a transição após governos de cunho liberal. "A ideia do 'poder cidadão', com propostas de inclusão e igualdade social, visava promover um chamado 'desenvolvimento humano estrutural', a médio e longo prazo, superando a pobreza e sustentando um crescimento com transformações na organização do país", afirma.
Ele também aponta que o investimento em programas sociais, alguns inspirados em casos de sucesso brasileiros, foram relevantes para ele se manter na Presidência.
"Programas sociais foram aplicados e mantidos como base em todos os mandatos de Ortega. Alguns foram inspirados em exemplos como o Hambre Cero (Fome Zero) e o Casas para el Pueblo (similar ao Minha Casa, Minha Vida)", diz. "A atenção dada aos setores populares provou ser um instrumento relevante para o regime de Ortega."
Esse aparente clima favorável foi rompido quando manifestantes foram às ruas e houve uma reação do governo.
Foi quando Ortega usou a polícia e grupos paramilitares, chamados de "parapolícia", que são milícias formadas por policiais à paisana, integrantes de gangues e da Juventude Sandinista. "Corpos policiais e paramilitares são a base da força repressiva de Ortega", afirma o historiador Fred Maciel.
Houve mortos dos dois lados: 360 do lado dos rebeldes contra 20 policiais.
O banho de sangue na Nicarágua supera a forte repressão realizada, no ano passado, pelo ditador Nicolás Maduro contra os opositores que tomaram as ruas da Venezuela. Confrontos com forças da Guarda Bolivariana e milícias chavistas deixaram entre 120 e 157 mortos entre março e agosto de 2017 --os números variam de acordo com a origem dos dados: a contagem mais baixa vem do Ministério Público controlado pelo governo e a mais alta por lideranças oposicionistas.
"Acredito que a Venezuela esteja numa posição distinta, principalmente por sua relevância econômica. Mas existem fragilidades institucionais em ambos os países. A situação de Ortega nunca esteve tão debilitada quanto atualmente. Porém, sua disposição (ainda que limitada) em negociar demonstra possibilidades de arranjos locais que permitam o fim dos confrontos", afirma o pesquisador.
Repressão já teve ataques em igreja e universidade
Os últimos meses já podem ser considerados os mais violentos no país desde a guerra civil, que terminou em 1990.
Além dos mais de 360 mortos, há pelo menos 1.500 feridos. A ONU (Organização das Nações Unidas) denunciou ainda casos de tortura e detenções arbitrárias, além de muitos desaparecidos. Uma mulher relatou à "Folha" ter sido cortada repetidamente com um bisturi para contar onde estava seu filho, um estudante do ensino médio.
É constante o trânsito de patrulhas policiais e paramilitares portando armamento pesado.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Anistia Internacional afirmaram que a polícia e as milícias "atiram para matar".
Durante a repressão aos manifestantes anti-Ortega, forças policiais e paramilitares abriram fogo contra alunos que estavam entrincheirados na Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua (Unan) e dentro de uma igreja em Manágua, capital do país. Chegaram a tentar incendiar a igreja com as pessoas dentro do edifício.
Dois estudantes foram mortos, um deles com um tiro na cabeça. "Eles nos atacaram com fuzis AK-47, Dragunov e granadas. Nós tínhamos apenas morteiros artesanais e as barricadas", disse um dos alunos à agência AFP.
A Igreja Católica tenta propiciar um diálogo entre manifestantes e governo, mas nem os religiosos escapam das agressões.
Paramilitares invadiram a Basílica de San Sebastian, distante cerca de 40 km de Manágua, e agrediram sacerdotes, incluindo o bispo auxiliar de Manágua, Silvio Báez. Um carro que transportava o bispo Abelardo Mata para a cidade de Masaya também foi atacado a tiros por paramilitares ligados ao governo. Ambos passam bem.
A Conferência Episcopal nicaraguense convocou um jejum nesta sexta-feira (20) para, segundo os bispos, "um ato de desagravo pelas profanações realizadas estes últimos meses contra Deus".
Governo nepotista e autoritário
Ortega e sua mulher, a também vice-presidente Rosario Murillo, afirmam que estão somente mantendo a ordem contra uma tentativa de golpe apoiada pelos EUA. Rosario, 67, ocupou diversos cargos oficiais durante os três mandatos consecutivos de seu marido e hoje é considerada o rosto do governo de Ortega. O próprio ex-guerrilheiro já afirmou que a Presidência do país é exercida 50% por ele, 50% por ela.
Desde que assumiu o poder, Ortega atuou na consolidação de sua autoridade, controlando a Suprema Corte, a Assembleia Nacional e o Conselho Eleitoral. Sua família também controla oito dos nove canais de televisão aberta do país.
"O trato clientelista, aliado a uma espécie de sistema de controle social e vigilância que busca suprimir descontentamentos e dissidências, minimiza o aparecimento de novas lideranças e de atores sociais, acentuando uma fraca institucionalidade democrática e diminuindo ainda mais as possibilidades de um amplo consenso social", analisa Fred Maciel.
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