'Era meu fim': amigas se salvaram de ataque de leões com abridor de latas
Do UOL, em São Paulo
10/06/2024 13h29
As suecas Helene Åberg e Jenny Söderqvist realizavam um sonho de infância quando passaram pelo maior susto de suas vidas, em uma excursão no deserto de Kalahari, no sul do continente africano. Em uma entrevista à BBC, as amigas relembraram a história.
Elas se conheceram trabalhando para a televisão sueca. Em 2006, Helene viu um anúncio para trabalhar em Gaborone, no Botsuana. Como o local é um dos países que abrange parte da savana Kalahari, ela convenceu Jenny a acompanhá-la em uma viagem de aventura. "Pareceu muito emocionante. Uma linda viagem de três dias", lembra Jenny.
Elas fizeram todos os preparativos que pareciam essenciais: kit de primeiros socorros, água para mais dias do que ficariam, mapas, e partiram sozinhas, com a certeza de que a rota seria inesquecível.
"A estrada para a Reserva de Caça do Kalahari Central é muito, muito bonita, vasta e vazia, porque não há muitas aldeias e há algo de muito bonito nisso", descreveu Jenny.
Elas tinham noção que o trajeto era perigoso: ao entrarem na reserva de caça, em um caminhão, foram orientadas a não descer: os animais poderiam comê-las.
A regra número 1 é: não saia do carro. Nunca saia do carro. Você está preso? Não saia do carro. Seu caminhão quebrou ou você está perdido? Não saia do carro. Precisa ir ao banheiro? Vá ao lado da porta e depois entre novamente no veículo. Helene Åberg
A primeira noite foi classificada por elas como espetacular. "Embora não tenhamos dormido bem, porque era desconfortável, o céu estava cheio de estrelas e dava para ouvir os grilos e as hienas ao longe e o deserto acordando", afirmou Jenny.
No segundo dia, as amigas avistaram leões. Tudo parecia perfeito, mas à tarde Helene enxergou um vulto laranja no retrovisor e sentiu um cheiro de queimado.
Quando abri a porta, senti fogo atingindo minhas pernas e vi chamas de cerca de um metro saindo do pneu traseiro; fechei a porta e falei para Helene: 'O caminhão está pegando fogo, temos que sair'. Jenny Söderqvist
A grande questão, naquele momento, era o solo: em vez de areia, o terreno do Kalahari é composto por grama seca. Se o fogo atingisse o chão, provavelmente tomaria conta de tudo. Mas, sem opção, elas resolveram pular.
"Achei que era o meu fim, mas consegui sair do caminhão. Mesmo muito machucada, fugi do veículo, que ainda estava em chamas, em direção à grama. Vi Helene correndo em direção ao caminhão. Achei estúpido e comecei a gritar com ela: 'Não chegue perto do caminhão! Não chegue perto do caminhão!'", lembra Jenny.
De repente, o carro explodiu e levantou meio metro do chão, fazendo um barulho alto. Comecei a hiperventilar, pensando: 'O que vamos fazer? Vamos morrer'. Helene Åberg
As amigas conseguiram se salvar das chamas, mas perderam o que seria a casa delas naquela viagem. O mais preocupante era que, sem o caminhão, elas não conseguiam cumprir a principal regra do percurso. Com o fogo, também se foram comida, remédios, água, mapas e roupas.
"Sabíamos que a cidade mais próxima ficava a cerca de 20 quilômetros de distância. Se tivéssemos sorte, de repente haveria alguém", diz Helene. "Quando o fogo começou a se espalhar, a escolha foi fácil: começamos a caminhar."
A caminhada foi repleta de desafios: Helene não estava com calçados adequados para andar no mato, Jenny andava devagar porque se machucou ao sair do caminhão. Elas se conectavam por um galho, cada uma segurava uma ponta.
Chegou um momento em que Jenny me disse que estava exausta e não podia continuar, que ia ficar ali. Eu disse a ela que de jeito nenhum, que ela deveria colocar um pé na frente do outro e continuar porque eu não iria deixá-la sozinha. Helene Åberg
Jenny acreditava ser alvo fácil para um leão, caso o animal aparecesse no caminho. "Eu tinha certeza de que eles iriam me comer, então falei para Helene que se eles nos atacassem, era para tentar se defender, para se salvar e seguir em frente."
As duas seguiram firme e estavam esperançosas —até que, à noite, Helene viu dois pontos vermelhos se movendo em direção a elas. De repente, notou que eram quatro. Só podiam ser animais.
Mais tarde descobrimos que o único animal naquela área cujos olhos parecem pontos vermelhos desse tamanho são os leões. Helene Åberg
Para manter os animais afastados, elas decidiram fazer barulho. Primeiro, cantaram. Depois, começaram a gritar palavras aleatórias: alfabeto, números, gramática alemã, times de futebol. De repente, colidiram com o que parecia ser um muro de pedra.
Na verdade, a estrutura era um banheiro. Lá, elas descansaram o máximo que conseguiram.
Quando amanheceu, vimos três casas não muito longe, a 150 metros. Ficamos muito felizes, sabíamos que estaríamos seguras, mas quando chegamos, batemos nas portas e janelas e nada. Não havia sinais de vida. Elas haviam sido abandonadas. Jenny Söderqvist
Elas conseguiram abrir uma das portas e entraram. Felizmente, encontraram comida: macarrão, sopa e duas latas Spam, uma espécie de presunto. Tinha um tanque com água de chuva, que foi classificado por Jenny como "a melhor água do mundo".
Segundo os mapas, o local habitado mais próximo ficava a 100 quilômetros dali. Elas não conseguiriam caminhar, então passaram o dia escrevendo "socorro" no chão com tijolos, caso algum avião passasse —o que não aconteceu.
Perto das casas, tinha um trator. Mas nem sinal da chave dele. "Procuramos em todos os lugares. Experimentamos grampos de cabelo e todas as chaves que encontramos", afirmou Helene. Já era o quarto dia da viagem que deveria durar três.
Eu ouvi um barulho. Tinha visto muitos documentários e sabia que era o barulho que os leões fazem. Fiquei com tanto medo que congelei. Não pude nem contar para a Helene, mas ela se virou e eu sabia pela expressão dela que ela sabia. Jenny Söderqvist
Elas entraram na casa e fecharam a porta, tentando pensar em algo que funcionaria como chave para o trator. "Em algum momento, Jenny entrou, fez um café para mim —havia um pouco de café instantâneo. Dessa vez foi ela quem ficou calma e forte, e me confortou", diz Helene.
Enquanto abriam as latas de presunto, Helene percebeu que o abridor de latas poderia funcionar como chave. "Eu disse a Jenny: 'Vamos comer primeiro, mas depois vamos experimentar essas chaves no trator'", disse ela.
Depois de comer, ela foi até o trator e... funcionou! Ficamos tão felizes que esquecemos dos leões e começamos a dançar e pular. Jenny Söderqvist
Elas pegaram os poucos suprimentos que encontraram e foram rumo ao Grasslands Safari. Quando chegaram, encontraram um homem com balaclava —estava muito frio. Elas contaram tudo o que passaram e ele ficou surpreso.
Helene e Jenny foram atendidas e entraram em contato com a polícia, embaixada e familiares. Anos depois, elas acreditam que só sobreviveram porque estavam juntas e "se complementaram" nas estratégias de sobrevivência.
Nós simplesmente precisávamos uma da outra o tempo todo. Eu não estaria aqui hoje sem Jenny. E não acho que Jenny estaria aqui hoje sem mim. Helene Åberg