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Criança que cozinha como 'fuga' da guerra sonha em deixar Gaza e virar chef

Sob o barulho constante de drones e de eventuais bombardeios, uma menina de 10 anos faz receitas improvisadas na Faixa de Gaza. Renad Attallah, que parou de ir à escola quando a guerra começou, passou a publicar vídeos transformando os insumos que recebia em pratos tradicionais e modernos, sempre repaginados à escassez. Hoje, ela tem meio milhão de seguidores nas redes sociais.

O que aconteceu

Renad vive em um cômodo com cinco irmãos e os pais. Eles moram em uma casa dividida entre quatro famílias na cidade de Deir al-Balah, no sul do enclave.

Perfil de receitas foi criado para que menina "se distraísse" dos bombardeios. Ao UOL, a farmacêutica Nouhan Attallah, 25, irmã de Renad, administradora do perfil, contou que a garota sempre gostou de cozinhar, mas fazia isso pouco porque focava nos estudos. Ela deveria começar o equivalente ao quarto ano do ensino fundamental com o irmão gêmeo, Adam, quando as escolas pararam de funcionar, em outubro.

Ela começou a cozinhar para ficar menos entediada e também para ter alguma pitada de esperança fazendo algo que ela ama. Renad ama cozinhar, criar novos pratos. É muito boa nisso.
Nourhan Attallah, em entrevista ao UOL

Hambúrguer "de guerra" está entre receitas. Uma das reproduções mais famosas da conta da menina é o hambúrguer, alimento preferido dela, feito com carne de lata recebida por ajuda humanitária. Nos vídeos, Renad fala em árabe e é legendada em inglês.

Pratos tradicionais também são preparados em versões "alternativas". A maqlupa, tradicionalmente feita com frango, ganhou o nome de "maqlupa órfã" em uma versão preparada sem a proteína, cujo quilo custa, segundo a família, US$ 30 (cerca de R$ 160) após a guerra.

Além de receitas, as postagens também informam se a família continua viva em meio à guerra. "Estávamos dormindo e acordamos de repente com uma luz forte e um barulho muito alto. Pessoas que nunca pensei que morreriam foram martirizadas", contou a menina em uma das publicações mais recentes, ao mostrar escombros do bombardeio que atingiu a casa de vizinhos e matou três pessoas.

Menina ainda tem sonhos. Renad pensa em ser chef de cozinha quando crescer. Inspirados pelo talento e sucesso da garota, a família pensa em abrir um restaurante quando conseguir deixar a Faixa de Gaza, um plano que depende de dinheiro, das condições de abertura da fronteira (fechada desde o início da invasão terrestre por parte de Israel) e da sorte de sobreviver entre os ataques constantes.

Renad tem uma personalidade animada e é cheia de esperança. Queria que o mundo visse quem ela é por meio dos seus vídeos de receitas. Eu imaginei que eles fariam sucesso, mas não com tanta rapidez e nem com tanto alcance.
Nourhan Attallah, em entrevista ao UOL

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"Controlam o que comemos"

A irmã de Renad trabalhava como nutricionista antes do começo da guerra. Ao UOL, ela contou que a alimentação, assim como a arte palestina, é rica e plural, mas foi fortemente afetada com o controle das fronteiras. Hoje, os alimentos, em sua maioria doados por outros países, entram pela passagem de Rafah em menor quantia do que antes.

Perdemos muitos elementos típicos da nossa alimentação na guerra. Eles cortaram o fornecimento de vegetais por um tempo, depois permitiram que eles entrassem nos caminhões, depois, os proibiram de novo. Eles controlam até o que comemos e decidem se querem nos ver alimentados ou com fome.
Nourhan Attallah, em entrevista ao UOL

Família junta dinheiro para deixar o país. Um financiamento coletivo foi levantado por amigos de Nouhan. Após mais de 4.000 doações, família conseguiu 128 mil euros, valor próximo da meta final, que é de 150 mil euros (equivalente a R$ 880 mil).

Como o dinheiro do financiamento coletivo será usado. Do valor levantado, cerca de 36 mil euros (mais de R$ 200 mil) serão pagos a facilitadores para cruzar a fronteira de Gaza com o Egito. Outra parte do dinheiro será usada para pagar os estudos de Renad e do irmão gêmeo dela até a vida adulta e o valor restante será aplicado na abertura do restaurante familiar que eles querem ter junto a uma nova vida. A família ainda não sabe para qual país irá quando conseguir deixar Gaza.

Fome em Gaza

A Faixa de Gaza tem 2,2 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar extrema. A projeção é da Cruz Vermelha, feita com base no Quadro Integrado de Classificação da Segurança Alimentar.

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Dificuldade na distribuição de insumos humanitários agrava problema do enclave. A única entrada de ajuda humanitária no país hoje é a passagem de Rafah, na fronteira com o Egito.

Só em Rafah, perto do Egito, há 1,5 milhão de pessoas refugiadas, segundo estimativa da Cruz Vermelha. Todas essas pessoas têm pouco acesso à comida e água potável, segundo a ONG.

Cessar-fogo é opção para solucionar problema da fome. Em nota, o PMA (Programa Mundial de Alimentos), maior agência humanitária de combate à fome do mundo, afirmou que o fim da guerra abriria as fronteiras de ajuda humanitária aos palestinos.

Um cessar-fogo é absolutamente necessário. Sem isso, mais pessoas vão morrer, tanto pela consequência direta da violência, quanto pelas consequências [da guerra] na saúde e no bem-estar das pessoas. Matthew Hollingworth, diretor do Programa Mundial de Alimentos, em nota

Guerra deixou quase 40 mil mortos

Em nove meses, mais de 38 mil pessoas foram mortas por bombardeios israelenses em Gaza. A informação é do Ministério da Saúde da Faixa de Gaza, território governado pelo Hamas, que também sinalizou mais de 87 mil feridos em ataques na região.

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Do outro lado da guerra, além de 1,2 mil mortos no dia 7 de outubro, estima-se que 600 soldados de Israel tenham morrido. Ao menos 125 reféns do país comandado por Netanyahu continuavam sequestrados sete meses depois da guerra, informou o governo israelense.

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