Democracia segue longe da Síria mesmo com queda de Assad, dizem analistas

A queda de Bashar al-Assad põe fim a um regime de poder de 24 anos na Síria, mas não aproxima o país de um processo democrático. O UOL conversou com analistas internacionais que afirmam que a deposição do governo não interrompe a guerra civil que assola o território desde 2011.

O que aconteceu

"Sai uma ditadura e vem outra", avalia Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da PUC-SP. Segundo Nasser, que é especializado em Oriente Médio, a deposição do governo de Assad não traz mudanças significativas para a Síria. "Vai ficar do jeito que sempre esteve, a guerra civil continua", afirma.

Queda de Assad não significa aproximação com processo democrático, apontam especialistas. Nasser diz que as comemorações da população síria refletem muito mais a euforia pela queda do governo do que com um futuro político promissor no país. "Em termos de liberdades democráticas não se saiu do lugar", diz Paulo Bittencourt, pesquisador de Ciência Política no Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP.

"É uma repressão que pegou gerações", diz Nasser sobre regime de Assad. Isso porque o pai do líder desaparecido, Hafez al-Assad, assumiu o poder na Síria após um golpe de Estado em 1971, quando era ministro da Defesa. Assad chegou ao poder com a morte do pai, que sofreu um ataque cardíaco em junho de 2000, aos 69 anos.

Há incertezas sobre como o grupo HTS, que depôs o governo, vai se comportar no poder. Para Bittencourt, o grupo dissidente da Al-Qaeda, não tem "compromissos democráticos". "Eles têm uma vertente fundamentalista religiosa muito marcada, é um grupo de facções aliadas. Não significa que com a chegada deles ao poder, os anseios da população vão ser atingidos", afirmou.

Grupo vai buscar apoio da população e desejam Síria unida, afirma Bittencourt. "Ao mesmo tempo, essa bandeira democrática vem sendo hasteada desde a primavera árabe, mas é preciso estar alerta para o uso retórico disso para angariar apoio doméstico e internacional", diz o pesquisador da USP.

Repressão à população deve continuar. O pesquisador da USP afirma que não se sabe como ocorrerá a contestação ao governo —e como será a resposta do governo a essa contestação.

Grupo dissidente da Al-Qaeda derruba Assad

Abu Mohamed al-Jolani, o líder do HTS
Abu Mohamed al-Jolani, o líder do HTS Imagem: OMAR HAJ KADOUR/AFP

Organização para a Libertação do Levante (Hayat Tahrir al-Sham ou HTS) é o maior grupo que luta na guerra civil da Síria. Ele tem origens na organização Al Qaeda e é considerado um grupo terrorista pelos Estados Unidos, pela União Europeia e pela Turquia. A ofensiva que derrubou Assad foi liderada pelo chefe do grupo, Abu Mohammed al-Jolani,.

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Guerra civil na Síria deu origem a diversos grupos. "O tecido social sírio se esgarçou, tornando-se um mosaico de diferentes grupos armados, com diferentes ligações internacionais", afirma Bittencourt. Em 2011, durante a Primavera Árabe, o grupo era conhecido como Frente Al Nusra.

Al-Qaeda não tem base social, diz Nasser. Segundo o professor da PUC-SP, não é possível igualar os grupos que atuam no Oriente Médio só pela ação militar. "O Hamas, por exemplo, que atua na Faixa de Gaza, luta pela construção de um Estado nacional, o Hezbollah, grupo que atua no Líbano, tem uma base social muito forte", diz Nasser.

Grupo HTS vai fazer a gestão econômica do território, acredita professor. "Para além do espectro ideológico, vai ser um regime repressivo, não tem nada a ver com a história democrática", diz Nasser.

HTS precisa alcançar apoio de outros grupos que disputam território sírio. Bittencourt afirma que o grupo liderou uma ofensiva relâmpago até a capital do país, Damasco, e tende a se concentrar no poder. Mas, segundo ele, o desafio será obter o apoio das Forças Armadas —que demonstraram lealdade ao regime de Assad. "Se o HTS não conseguir a lealdade dos demais grupos, pode enfrentar muita resistência, o que pode levar à manutenção da guerra civil."

Semelhanças com Líbia e Afeganistão

Muammar al-Gaddafi governou a Líbia desde 1969, quando liderou uma revolução e assumiu o poder
Muammar al-Gaddafi governou a Líbia desde 1969, quando liderou uma revolução e assumiu o poder Imagem: Wikimedia Commons

Nasser vê semelhanças entre a queda de Assad e de Muammar Kadafi na Líbia, em 2011. "Assim como na Líbia, que vive uma situação de caos até hoje, a Síria vai continuar numa guerra civil", diz o professor da PUC. "Nenhum grupo vai conseguir se impor, haverá uma tentativa de equilíbrio entre os grupos, de um lado, e o país partido, de outro".

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Ausência de governo de unidade nacional na Líbia até hoje pode ser cenário futuro na Síria. "Esses grupos, como o HTS, não tem condições de constituir um grupo de governo com unidade nacional", avalia Nasser. "Os curdos no norte da Síria tem um posicionamento à esquerda e não vão se render ao HTS. Externamente, nenhum país vai apoiar esses grupos".

Bittencourt vê paralelos com o contexto da guerra no Afeganistão e a volta do Talibã ao poder. "São grupos formados por nacionais que conseguem ascender quando há um vácuo de poder dos aliados dos governos instituídos (russo, no caso da Síria; e Estados Unidos, no caso do Afeganistão). A guerra foi deflagrada pelos EUA após o 11 de setembro. Após quase duas décadas de disputas, os EUA anunciaram a retirada das tropas do país e o grupo extremista islâmico Talibã retomou o poder em Cabul, capital do país.

Fatores que levaram à queda de Assad

Fim de regime é resultado de insatisfações sociais e econômicas, avalia Bittencourt. "São eventos que se desenrolaram desde 2011", diz. Além disso, segundo ele, o contexto se dá com a Rússia e a China barrando resoluções que poderiam resultar para a Síria. "O apoio da Rússia [ao governo Sírio] se deu tanto na frente política, internacional e diplomática. A China deu um apoio mais velado barrando questões do conselho de segurança", diz. "Isso favoreceu o governo sírio e a população continuou sendo reprimida."

Fatores locais internacionais impediram que Assad caísse antes. Segundo Nasser, a guerra da Ucrânia, o envolvimento da Rússia e do Irã na guerra da Ucrânia, a crise econômica do Líbano, o enfraquecimento do grupo extremista Hezbollah e os ataques do grupo extremista Hamas no dia 7 de outubro tomaram as atenções ao redor da Síria. "Essas forças foram diminuindo e o exército sírio é muito pequeno e precário. Além disso, há um espectro enorme de forças contra Assad."

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