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Retrospectiva 2012: Por ser muçulmano, comediante relata medo de subir ao palco na Alemanha

Comediantes de stand-up não têm onde se esconder e devem achar um jeito de se conectar com o público - Brad Vest/The New York Times
Comediantes de stand-up não têm onde se esconder e devem achar um jeito de se conectar com o público Imagem: Brad Vest/The New York Times

Aman Ali*

Do New York Times

11/12/2012 06h00

Às vezes, um estranho é quem lhe mostra sua origem. Histórias comuns, rotas de imigração diferentes.

No início do ano, no palco do teatro Babylon, em Berlim, comecei a contar histórias da minha vida.

Eu estava nervoso. Sou muçulmano praticante e não sabia como o público alemão reagiria diante de um cara estranho e moreno.

E falei. Contei que, quando era criança, levava para casa o boletim da escola, com 95 pontos, e meu pai dizia: “Por que não 100? Se não fizesse corpo mole, teria conseguido aproveitamento máximo”.

A história é antiga, mas consegue arrancar risadas - se bem que ainda me deixa maluco como naquele tempo.

Dei uma entrevista na TV para Christiane Amanpour (na CNN) depois de lançar “30 Mosques in 30 Days”, blog no qual um amigo e eu falamos sobre os muçulmanos que conhecemos durante uma viagem de carro aos 50 Estados norte-americanos. Logo em seguida, meu pai me mandou um e-mail: “Foi muito bom, estou orgulhoso de você. Mas por que não usou gravata? Com esse cabelo você já tem cara de traficante! Pelo menos ia ficar parecendo um traficante que sabe se vestir bem”.

Meu pai tem 67 anos e a saúde debilitada. Nos últimos dez anos, tivemos que interná-lo por causa de dois infartos, um colapso da válvula do coração - que ganhou um stent -, duas pedras no rim, diabete e um glaucoma que o está fazendo perder a visão.

Teimoso, ele se recusa a se aposentar por mais que meus quatro irmãos e eu peçamos para tentar relaxar. O caçula ainda está na faculdade e meu pai insiste em pagar todas as suas despesas. “Meus olhos podem não funcionar direito, mas ainda tenho as mãos, entendeu? Vou continuar trabalhando”, ele me disse.

Meu pai pode ser um homem extraordinário para mim, mas sua história é a mesma de milhões de imigrantes que fogem da pobreza, de regimes ditatoriais e outras péssimas condições de vida para dar uma vida melhor para os filhos.


Segundo um relatório de maio do Censo Norte-Americano, pela primeira vez mais da metade das crianças nascidas nos EUA pertence a um grupo de minoria. O que isso significa? Simples: mais e mais pessoas estão chegando a esse país para trabalhar porque amam suas famílias como meu pai ama a minha - mas por que ainda usamos o termo “minorias”?

Os conservadores podem reagir a essa estatística com um medo xenofóbico; alguns deles, comentando outros assuntos, dizem que a estrutura das famílias tradicionais está desmoronando - justamente quando estão cercados de imigrantes que vêm para esse país para preservar suas famílias.


No palco, sempre menciono a história do meu pai. A dor e a preocupação que sinto em relação à sua saúde se mesclam com minha admiração eterna por sua ética de trabalho. E me consolo com a plateia quando percebo que não sou o único a enfrentar esse tipo de situação.

Meu pai fez engenharia civil na Índia porque sonhava em construir pontes e estradas.

E recusou um emprego “moleza” numa companhia elétrica quando se formou; queria vir para os Estados Unidos para encontrar oportunidades melhores. Foi para Chicago para conseguir a equivalência em engenharia civil. Trabalhava numa fábrica montando parafusos em lâminas usadas em máquinas moedoras por US$ 240 por semana. Estudava de dia e fazia um turno de dez horas à noite. Fez isso durante vários meses.

Até descobrir que um amigo trabalhava no Dunkin’ Donuts por US$ 250 por semana, dez dólares a mais que poderia mandar para a mãe e o irmão na Índia. Pediu demissão na fábrica e foi trabalhar no Dunkin’ Donuts.

Depois de um ano conciliando turnos puxados com as aulas, meu pai recebeu uma promoção para virar gerente e a chance de ser dono das lanchonetes. Recém-casado e com o primeiro filho a caminho, ele desistiu da faculdade.

Já faz mais de 40 anos que meu pai desistiu de estudar para se dedicar ao Dunkin’ Donuts em tempo integral - e só fiquei sabendo o quanto lhe doeu tomar essa decisão numa conversa que tivemos faz pouco tempo.

“Toda vez que pego uma estrada ou uma ponte começo a ficar triste”, disse ele. “Porque poderia ter sido feita por mim. Eu era bom de projeto, aquele poderia ter sido o meu.”

Essas frases eu nunca vou esquecer: “É por isso que eu pego no seu pé para você dar duro; não quero que jamais tenha que dizer: 'Poderia ter sido eu'”.

Neste ano, eu me apresentei como comediante stand-up em Inglaterra, Dinamarca, Bélgica e Alemanha, países sobre os quais sabia muito pouco. Conheço a maioria dos países europeus para os quais viajei só de filmes como “A Identidade Bourne”. (Na Dinamarca, toda vez que via uma van branca passando, juro que ficava esperando um cara com um silenciador sair de lá e me atacar.) Já tinha viajado muito com meu espetáculo e, como a maioria das pessoas no mundo fala inglês, achei que não teria problema.

Foi na Alemanha que fiquei mais ansioso. Li sobre a disseminação do sentimento antimuçulmano na Europa, principalmente ali, onde o ministro do Interior tinha dito: “O islã na Alemanha não é e nunca foi fato histórico”. O país tem uma das maiores populações muçulmanas do continente.

É claro que também tem um monte de caipira antimuçulmano nos EUA, mas nem de longe tem a ver com o que acontece ali na Alemanha. Mesmo assim, fui para lá de mente aberta.

E foi assim que cheguei a Berlim, meio nervoso no palco do Babylon. Para minha surpresa e alegria, a plateia foi para lá de receptiva, mas o show só se tornou inesquecível depois que saí do palco.

Um alemão não muçulmano se aproximou enquanto eu amarrava o sapato. Tinha um moicano loiro no meio da cabeça, uma faixa de couro com tachinhas em volta do pescoço e as letras do nome “David” tatuadas nos dedos. Estendeu a mão para me cumprimentar.

“Oi, meu nome é David”, ele disse.

“Estou sabendo … quer dizer, dá para ler”, respondi, apontando para seus dedos.

“Só queria dizer que eu … curti muito o seu show”, ele prosseguiu, meio nervoso.

Fez uma pausa; parecia não saber se continuava ou não. Ficava abrindo e fechando a boca e balançando a cabeça até finalmente falar.

“Nunca conheci um muçulmano antes.”

E continuou: “Vou ser sincero, Tenho muito medo de vocês. Ouço as notícias o tempo todo e a ideia de ter muçulmanos vivendo aqui me assustava... Mas aí vi sua apresentação, vi quem você era e me toquei que tinha me esquecido de que todos somos seres humanos. Agora estou com vergonha por ter sentido medo”.

David me contou que o pai nasceu na Polônia e imigrou para a Alemanha, do mesmo jeito que o meu pai - porque sonhava em dar uma vida melhor para os filhos. Como o meu pai, o de David foi superexigente com ele na infância, forçando-o a estudar numa escola particular e começar a trabalhar aos 14 anos. O rapaz nunca entendeu por que ele agiu assim até ouvir a minha história.

“Nunca pensei em como os nossos pais se sacrificaram só para a gente poder continuar sorrindo”, ele prosseguiu. “Por sua causa, fiquei com vontade de ir para casa e dar um abraço no velho.”

“A sua história me deu vontade de fazer o mesmo”, respondi.

Pensei no papo que tive com David, um cara com quem, até uma hora antes, jamais pensaria em conversar. As histórias de nossos pais nos aproximaram.

Meu pai nem sonha com a belezura de ponte que tinha acabado de construir.

 

  • Tania Savayan

    O comediante e escritor Aman Ali

* Aman Ali é escritor, comediante e um dos autores de “30 Mosques in 30 Days”, o diário de uma viagem de Ramadã pelos EUA. (Este texto faz parte da série "Fator de Mudança: Pauta Global 2013", com fotos e desenhos sobre eventos e tendências de 2012 que continuarão repercutindo em 2013.)