Opinião: boicotar a vodca russa não ajudará os homossexuais do país
A colunista de sexo e relacionamentos favorita dos Estados Unidos, Dan Savage, convocou um boicote à vodca russa para protestar contra os ataques violentos contra gays por parte de agressores nacionalistas e contra a legislação antigay apoiada pelo presidente Vladimir V. Putin. É uma resposta compreensível, mas as perspectivas de sucesso do boicote são poucas e a possibilidade de que isso se volte contra os gays, lésbicas, bissexuais e transexuais russos é alta.
Pesquisas estimam que dois terços dos russos consideram a homossexualidade inaceitável sob qualquer circunstância, algo semelhante às atitudes dos norte-americanos há três décadas. Nesse contexto conservador, a percepção de uma ameaça --mesmo que simbólica-- vinda do Ocidente liberal seria uma bênção para Putin, que pode se retratar como o defensor da família tradicional russa, dos valores cristãos ortodoxos e do orgulho nacional ao mesmo tempo. E, na medida em que a Rússia se torna mais xenófoba e reacionária, sua comunidade gay será vista com mais estranheza --o oposto da tolerância e da integração.
Como um estudioso da política russa, chego a essa conclusão com ambivalência. A vodca e o Kremlin de fato tiveram uma longa história de codependência.
Durante séculos, o Estado russo usou a vodca para oprimir e explorar seu povo. Líderes desde Ivan, o Terrível, e Pedro, o Grande, até Joseph Stalin, forçaram até mesmo seus colegas mais próximos a beberem até o estupor para mantê-los divididos e dependentes --da mesma forma que o Estado empurrava vodca para o povo para mantê-lo desequilibrado e subserviente. De 1763, durante o reinado de Catarina, a Grande, até meados de 1914, quando Nicholau 2º instituiu a proibição para ajudar a mobilização para a 1ª Guerra Mundial, as receitas dos impostos sobre bebidas alcoólicas somaram cerca de 25% a 40% de toda a receita do Estado, o suficiente para sustentar um dos maiores exércitos do mundo e a manutenção dos opulentos palácios dos Romanov. Mesmo nas décadas de 70 e 80, as receitas com a vodca constituíam um quarto da receita da União Soviética.
Oponentes por toda parte há muito tempo reconhecem a capacidade opressora do álcool. Em 1845, Frederick Douglass argumentou que embebedar os escravos era "o meio mais eficaz nas mãos do senhor para conter o espírito de insurreição".
A um mundo de distância, em 1858 e 1859, camponeses do Báltico até o Volga boicotaram a vodca oferecida em abundância pelo Estado. À medida que as tabernas se esvaziaram e destilarias fecharam, o governo respondeu com brutalidade. "Os abstêmios apanhavam para beber; alguns que obstinadamente se recusavam tinham bebida derramada em suas bocas através de funis e depois eram levados para a prisão como rebeldes”, escreveu um jornalista britânico horrorizado.
Escritores como Dostoiévski e Turgenev usaram a vodca para enfatizar o atraso e a falência moral da ordem autocrática. Tolstói formou uma sociedade de temperança para promover o avanço espiritual e material dos russos contra o poder do Estado e da igreja (esse tipo de afronta lhe rendeu a excomunhão). Da mesma forma, dissidentes soviéticos de Andrei Sakharov a Aleksandr Solzhenitsyn eram abstêmios.
Por que, então, não devemos apoiar a convocação bem intencionada de Savage para um boicote?
Primeiro, beber Absolut, Belvedere ou Ketel One em vez de Stolichnaya é uma ação simbólica, como mudar a imagem do perfil no Facebook ou compartilhar um vídeo no YouTube, que muda pouca coisa para os gays e lésbicas da Rússia.
Em segundo lugar, um boicote permite que Putin retrate os EUA como um bicho-papão disposto a violar a soberania russa. Desde a emenda Jackson-Vanik, em 1974, que sancionou a União Soviética por restringir a emigração judaica, até a Lei Magnitsky, no ano passado, que punia as autoridades russas supostamente cúmplices pela morte de um investigador de fraude, os Estados Unidos têm um longo histórico de intromissão ineficaz nos assuntos russos. A maioria dos cientistas políticos concorda que as sanções raramente trazem os resultados desejados e podem minar a eficácia e a credibilidade dos grupos de oposição no país.
Em terceiro lugar e mais importante, a dependência histórica do Kremlin em relação às receitas geradas pela vodca em grande parte já acabou --tornando os esforços para impor o boicote ineficazes e até mesmo embaraçosos. Muitos bares pararam de servir Smirnoff, que desde 1930 é produzida nos Estados Unidos, e não na Rússia, e agora é fabricada pelo conglomerado britânico Diageo.
A Stolichnaya tem sido o principal alvo –o Hotel Moskva em seu rótulo é praticamente um sinônimo da Rússia desde 1972, quando a marca se tornou disponível nos EUA graças a um acordo que enviou a Pepsi para o bloco soviético. Infelizmente, a Stoli que bebemos é destilada na Letônia e de propriedade do Grupo SPI, com sede em Luxemburgo, ao contrário da Stoli (mais barata e menos venerada) consumida na Rússia, feita por uma empresa estatal em dificuldades, a FKP Soyuzplodoimport.
O diretor-executivo da SPI, Val Mendeleev, fez um esforço para condenar a lei antigay. Savage observa que o SPI é de propriedade de Yuri Scheffler, um magnata. Mas ele e Mendeleev fugiram da Rússia há alguns anos, assim como muitos oligarcas que se opunham a Putin, para evitar o exílio ou a prisão.
O Kremlin não é amigo dos gays, mas um boicote simbólico e ineficaz não ajudará. Uma abordagem melhor seria os ativistas gays na Rússia e seus aliados no exterior conectarem a causa da igualdade dos gays aos problemas que têm uma maior ressonância na Rússia, como a corrupção endêmica e o fraco estado de direito. Enquadrar a luta pela igualdade nesses termos provavelmente conseguirá mais simpatia do que protestar contra a garrafa.
Mark Lawrence Schrad, professor-assistente de ciência política na Universidade de Villanova, é autor do livro "Política da Vodca: Álcool, autocracia e a história secreta do Estado russo”, que será lançado em breve
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