Clínica na Libéria tem dia de vida, morte e rotina cuidadosa contra ebola
A estrada de terra é cheia de curvas e declives, passa por um seringal e chega ao alto de uma colina, perto da propriedade de uma antiga colônia de leprosos. O mais recente flagelo, o ebola, está sob ataque em um amontoado de prédios azul-cobalto operados por uma caridade americana, o Corpo Médico Internacional.
No centro de tratamento recém-aberto, funcionários liberianos e voluntários do exterior identificam quem está infectado, salvam aqueles que podem e tentam conter a disseminação do vírus. É um lugar tanto comum quanto de outro mundo. Os homens jovens que se sentem bem o bastante correm em torno do pátio; uma fumaça irritante sobe do incinerador médico para o amplo céu tropical; os médicos são irreconhecíveis nos trajes protetores amarelos; os pacientes que podem não ter ebola ouvem rádio afastados daqueles que tem, separados por uma cerca e ar fresco.
Aqui está a rotina de um dia na clínica:
7h20
Logo após sua chegada, cerca de meia dúzia de médicos e enfermeiros se reúnem perto de um quadro branco para a mudança de turno. Há 22 pacientes e não ocorreu nenhuma morte na madrugada. O centro –que inclui uma área de triagem, uma unidade restrita para os pacientes suspeitos de estarem infectados pelo ebola e outra para aqueles com a doença– não é lotado como algumas clínicas na Monróvia, a mais de quatro horas a oeste. Ele foi projetado para acomodar até 70 pacientes, mas ainda está sendo ampliado após sua abertura há poucas semanas. O lugar conta com apenas duas ambulâncias para transporte dos pacientes.
Um menino de 8 anos estava fraco demais para erguer uma garrafa de solução de reidratação oral até sua boca durante a noite. Bridget Anne Mulrooney, uma enfermeira americana, informou que lhe deu uma garrafa menor e lençóis para mantê-lo aquecido. Uma mulher, suspeita de estar infectada e que perdeu seu bebê e marido para o ebola, estava recusando alimentos e a medicação para os sintomas e outras possíveis doenças, como a malária.
Um homem septuagenário, um conversador favorito dos funcionários, agora estava confuso, com seu lençol coberto de sangue. Ele deu entrada quatro dias antes, mas os exames de laboratório confirmando o diagnóstico de ebola ainda não retornaram. "Eu acho que ele é positivo", disse o doutor Colin Bucks, um americano. "Eu acho que este será um evento de fim da vida."
Oito pacientes precisaram de fluidos intravenosos para combater a desidratação. Um paciente foi descrito como feliz. Outro estava jogando cartas.
7h40
O culto matinal começou com uma canção e bater de palmas, realizado três vezes. Aproximadamente 18 funcionários locais, a maioria usando botas de borracha e uniformes azuis de hospital lavados com tanta frequência com água sanitária que agora eram de cor de rosa pastel, dançavam e então rezavam pela misericórdia de Deus na unidade de tratamento e para aqueles que trabalhavam lá. Alguns colocavam as mãos, cobertas com luvas coloridas, sobre o coração. Em uníssono, os liberianos cantavam: "Cubra-nos com seus braços protetores, ó Deus".
8h10
Sean Casey, um americano que é o líder da equipe no centro, reuniu seus chefes de departamento para o que se tornou uma conversa sobre o fluxo de pacientes. O chefe da equipe das ambulâncias disse que cinco pacientes possivelmente portadores do ebola aguardavam transporte para o centro. Mas a ala com casos suspeitos estava cheia, disse Casey, e precisava ser liberada primeiro. Resultados de laboratório eram necessários para que os pacientes sem ebola pudessem receber alta e os casos confirmados pudessem ser transferidos para outra ala. O centro também tinha alguns pacientes doentes de outros males. Eles deveriam ser transferidos para o hospital local, mas este oferecia atendimento apenas limitado, desde que reabriu após seis enfermeiras terem morrido por ebola.
8h40
Uma mulher liberiana servia um mingau quente de inhame a partir de um balde azul –o café da manhã para pacientes e funcionários. O alimento é preparado fora dali, em uma universidade que está fechada por causa da epidemia e que abriga muitos dos membros da equipe. O centro tem pessoas trabalhando como faxineiras, pulverizadoras e removedores de lixo –parte da equipe chamada WASH ("water, sanitation and hygiene", ou água, saneamento e higiene)– que desinfetam continuamente o local e removem o material contaminado. Mesmo assim, a visão era um pouco chocante: a mulher estava servindo a comida em pratos descartáveis a apenas poucos passos dos vestiários dos funcionários que saíam das áreas de descontaminação, da farmácia e passando por um refrigerador com um aviso de "Testes de sangue de ebola. Não colocar comida".
8h45
A equipe médica –incluindo um médico americano, uma enfermeira espanhola e uma enfermeira queniana, juntamente com um médico assistente, enfermeiros e outros funcionários liberianos– vestia peça por peça o equipamento protetor para entrar nas áreas de tratamento. São luvas, vestimentas de proteção, máscaras, capuzes, aventais, óculos, tudo checado em um espelho para assegurar que não há pele exposta. O processo levou cerca de 20 minutos.
Um médico, Steven Harris, entrou na ala dos pacientes suspeitos de estarem contaminados pelo ebola e perguntou a eles se estavam com fome. "Como você se sente?" ele perguntou para um. Uma mulher de camiseta caminhou com dificuldade atrás dele carregando uma cadeira de plástico, que parecia pesada em suas mãos fracas. Funcionários do lado de fora da ala dos pacientes entregavam garrafas de água e sacos plásticos de lixo por um portão do vestiário, sem nunca tocar. Os faxineiros entraram antes da equipe médica e pulverizavam o chão com uma solução de cloro e recolhiam o lixo em baldes que pareciam com aquele usado para servir o inhame.
Funcionários observando do lado de fora debatiam se algumas mesas de madeira de jogos com dados podiam ser dadas aos pacientes na ala dos suspeitos de contágio. Casey decidiu contra, por temer adoecer alguém não infectado; apenas os pacientes confirmados com ebola podiam jogar em segurança juntos. Friederike Feuchte, uma psicóloga alemã, entendeu, mas ficou desapontada. "Eles se sentem entediados", disse sobre os pacientes aguardando os resultados dos exames.
Um deles, Kolast Davies, 45 anos, concordou. "Ficar aqui é estressante e muito tedioso, especialmente quando você não sabe seu destino", ele disse em uma entrevista. Ele deu entrada depois que os gerentes da siderúrgica onde ele trabalha, a ArcelorMittal, o enviaram quando ele voltou de ferias em Monróvia. Agora, três dias depois, ele ainda não recebeu os resultados de seus exames. Ele parecia com saúde e a equipe médica buscava assegurar que ele não contraísse ebola de outros pacientes. "Eles disseram para que eu tenha muito cuidado com os outros. Para não tocar em ninguém", ele disse. Seu leito, como o dos outros na unidade, ficava em um espaço de 2,5 por 3 metros, separado dos outros por paredes de lona emoldurada em madeira, e compartilhava a latrina com outros pacientes.
Certa noite, ele disse, uma pessoa morreu sob o mesmo teto. "É patético demais", disse Davies, às lágrimas. "Eu acho que o mundo precisa vir."
10h
Dois homens usando as vestimentas amarelas de proteção e luvas grossas de borracha deixaram a clínica carregando um saco de corpo em uma maca. Enquanto caminhavam pela floresta tropical cheia de canto de pássaros, outro homem seguia atrás, pulverizando a trilha de terra até as folhas secas brilharem com a solução de cloro. Eles estavam enterrando um homem de 38 anos. Nos últimos estágios de sua doença, ele deixou sua cama, desorientado e se curvou contra uma mulher de 50 anos, que morreu. Uma enfermeira os encontrou deitados juntos na manhã seguinte, uma cena que Hatch descreveu como "simultaneamente tocante e horrível".
10h50
Os médicos examinaram o primeiro conjunto de resultados de exames vindos de um novo laboratório móvel que a Marinha dos Estados Unidos montou no dia anterior no terreno da universidade local. Parecia milagroso: os resultados dos exames agora seriam entregues em apenas poucas horas, em vez dos quatro ou cinco dias antes necessários, quando as amostras precisavam ser levadas para Monróvia e às vezes se perdiam. Davies soube que seu teste deu negativo para ebola e podia partir.
Outra paciente, Lorpu Kollie, 28 anos, se alegrou ao ser informada que não estava na lista dos infectados. Ela telefonou para seus pais e lhes disse que estava voltando para casa. Mas um funcionário a confundiu com outra pessoa; na verdade seu exame de sangue, realizado quase uma semana antes, deu positivo para ebola.
Ao receber o novo diagnóstico, Kollie ficou devastada e se recusou a ir para a ala dos confirmados com ebola. Feuchte, a psicóloga, foi até ela. "Eu disse para todos que estava voltando para casa", Kollie lhe disse, chorando. Feuchte disse que ela poderia permanecer ali por ora e que fariam um novo teste nela. Outra paciente buscou tranquilizar Kollie, a lembrando que ela poderia ficar bem. Não se preocupe, ela disse, "são só mais alguns dias".
13h
Um funcionário voltou do mercado local com sacolas de roupas de segunda mão, itens para substituir as roupas dos pacientes que foram descartadas, por estarem sujas ou possivelmente contaminadas. Entre suas compras estavam 20 lappas, tecidos com padrão batik usados como saias; 20 sutiãs; 30 pares de meias; e pilhas de casacos e calças surradas. "Esta aqui é de 10ª mão", brincou Eric Diudonne, um engenheiro civil, que enviou as roupas para serem lavadas pelo pessoal da lavanderia.
16h30
Os enfermeiros se vestiram para dar os medicamentos da tarde, ministrar os fluidos intravenosos e tirar sangue dos novos pacientes e de três que seriam testados novamente. E os novos resultados chegaram. O de Kollie agora era negativo, o que significava que ela se recuperou do ebola ou seu primeiro exame foi trocado com o de outra pessoa. "Obrigada, obrigada!" rejubilou Kollie ao receber a notícia. Ela dançou e estendeu os braços como se para abraçar os funcionários, que estavam separados dela por um tapume de plástico. "Eu vou voltar para casa", disse aos seus pais por telefone.
19h10
A equipe do turno do dia entregou os pacientes para a equipe do turno da noite. Vários pacientes pareciam melhores. E alguns cujos exames deram negativo voltariam para casa no dia seguinte.
Mas, como relatou uma enfermeira, um homem tinha vomitado no pátio. Outros encontraram uma faca na bainha sob seu travesseiro. Ele explicou que preferia morrer com uma facada que de ebola. Dois dias depois, a doença o matou.
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