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Trégua de Natal é uma grande história, dourada com o passar dos anos

Rob Hughes

Em Londres (Inglaterra)

24/12/2014 06h02

A Trégua de Natal, quando soldados britânicos e alemães teriam parado repentinamente de lutar na Frente Ocidental por algumas poucas horas, no dia de Natal de 1914, está escrita na história.

O que começou com o canto de “Stille Nacht” no lado alemão, seguida pela resposta de “Silent Night”, teria incluído uma partida improvisada de futebol na “terra de ninguém” entre as duas trincheiras adversárias.

“Nós todos crescemos com a história dos soldados de ambos os lados baixando suas armas no Natal, quando disparos deram lugar a presentes”, disse o príncipe William em uma cerimônia na Inglaterra, há duas semanas, para inauguração de um memorial para o evento.

“O futebol”, prosseguiu o príncipe, “tem o poder de unir as pessoas e derrubar barreiras. É vital que, passados 100 anos, mantenhamos a história da Trégua de Natal viva. Ela permanece altamente relevante hoje como uma mensagem de esperança e humanidade, mesmo nos momentos mais sombrios”.

Esperança, humanidade e, talvez, futilidade.

O futebol é um jogo notável que cruza fronteiras por todo este mundo. Mas o que aconteceu naquele dia, há um século, não impediu a carnificina que tomou estimadas 16 milhões de vidas, nem derrubou barreiras para prevenir as guerras atuais.
 

“Esportes, não guerra” deve ser uma das frases mais arrependidas existentes.

A escultura inaugurada pelo príncipe William foi concebida por um menino de 10 anos, Spencer Turner. Ela descreve duas mãos apertadas em amizade, dentro do contorno de uma bola. É simples, brilhante e cheia de esperança infantil.

E os adultos estão promovendo essa esperança. Ocorreram reencenações do jogo de futebol na terra de ninguém, incluindo uma partida entre as equipes do Exército Britânico e do Exército Alemão em Aldershot, Inglaterra, e uma partida na Bélgica nesta semana, perto do campo flamengo onde a trégua aconteceu.

A UEFA, a federação europeia de futebol, produziu um vídeo breve no qual ex-astros –Bobby Charlton, da Inglaterra, Paul Breitner, da Alemanha, e Didier Deschamps, da França– leem uma narrativa e jogadores atuais –Wayne Rooney, Philipp Lahm e Hugo Lloris– leem em voz alta as cartas dos soldados nas linhas de frente em 1914.

Tudo é sincero. Para registro, a Alemanha, atual campeã mundial, conquistou quatro Copas do Mundo e a Inglaterra uma, em um esporte atualmente jogado por 209 associações nacionais.

O breve cessar-fogo na Frente Ocidental na Bélgica ocorreu após a publicação de uma carta das defensoras do sufrágio feminino na Inglaterra, pedindo “às Mulheres da Alemanha e da Áustria” que exigissem a paz no Natal de 1914. Sem dúvida, alguns homens nas linhas de frente deixaram suas trincheiras lamacentas e congeladas não apenas para enterrar seus mortos, mas para trocar presentes como tabaco ou botões.

Henry Williamson, na época um soldado de 19 anos da Brigada de Fuzileiros de Londres que sobreviveu à guerra e se tornou escritor, enviou uma carta da linha de frente para sua mãe.

“Na minha boca”, ele escreveu, “está um cachimbo presenteado pela princesa Mary. No cachimbo se encontra tabaco alemão. Ha ha, você diria, de um prisioneiro ou encontrado em uma trincheira capturada. Mas não! De um soldado alemão. Sim, de um soldado alemão vivo em sua própria trincheira. Maravilhoso, não é?”

Outras cartas, publicadas no “Times” de Londres, mencionavam a partida ou partidas que ocorreram. Alguns sugeriram que foram apenas toques, principalmente entre soldados ingleses usando bolas improvisadas –alguns dizem que uma lata de carne serviu como substituta.

Menos relatos vieram do lado alemão, apesar de Richard Schirrmann ter escrito em dezembro do ano seguinte que seu regimento, que mantinha uma posição nas colinas da Bélgica ocupada, recebeu um pedido das tropas belgas para que fossem autorizadas a enviar cartas aos seus familiares.

“Algo fantasticamente não militar ocorreu”, relatou Schirrmann. “As tropas alemãs e francesas espontaneamente chegaram à paz e cessaram as hostilidades. Elas se visitaram e trocaram vinho, conhaque e cigarros por pão preto, biscoitos e presunto.”

Schirrmann sobreviveu à guerra e criou a Associação Alemã dos Albergues da Juventude em 1919.

No Natal seguinte, a trégua foi proibida sob ameaça de corte marcial para qualquer soldado de qualquer lado que ousasse confraternizar com o inimigo.

A história da Trégua de Natal, e sua parte de futebol, foi dourada com o passar das décadas. É implausível, mas não impossível, que algum soldado tenha levado uma bola de couro –ou mesmo uma bexiga de porco inflável– às trincheiras. Mas é assim que passou a ser descrito nos relatos romantizados e embelezados.

Robert Graves, o poeta e escritor britânico, reconstruiu a história do evento em 1962, com 133º Regimento Real Saxão da Alemanha enfrentando o que chamou de tropas escocesas. No relato de Graves, os alemães venceram por 3 a 2.

Na partida entre as equipas dos exércitos britânico e alemão na semana passada, em Aldershot, os britânicos venceram por 1 a 0.

Futebol e guerra se cruzaram novamente ao longo do passado século. Talvez o mais evocativo dos triunfos tenha sido a vitória do Iraque, arrasado por conflitos, na Copa da Ásia de 2007, que foi jogada em quatro países: Indonésia, Malásia, Tailândia e Vietnã.

O futebol pode realmente sobreviver a hostilidades. Mas apenas no Natal é que se acredita em uma história de ambos os lados baixando suas armas para se encontrarem na terra de ninguém. Uma bela lembrança, tornada ainda mais bonita nos anos subsequentes de imaginação humana.