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Rússia insiste em viver glorioso passado soviético, mesmo que seja mentira

Soldados russos participam da parada do Dia da Vitória em 2018 em Moscou. O evento com imagens e símbolos soviéticos, marca o aniversário da vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial - Maxim Shipenkov/Pool via Reuters
Soldados russos participam da parada do Dia da Vitória em 2018 em Moscou. O evento com imagens e símbolos soviéticos, marca o aniversário da vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial Imagem: Maxim Shipenkov/Pool via Reuters

Alisa Ganieva*

31/12/2018 04h00

Fator de Mudança: Em fevereiro de 2018, o governo polonês determinou que implicar a nação em crimes de guerra nazistas é uma ofensa passível de prisão. A lei foi mais tarde suavizada após clamor internacional

Meus compatriotas costumam dizer que a Rússia é um país com um passado imprevisível. É verdade: nossa história é muitas vezes reescrita para coincidir com a agenda política e os caprichos casuais daqueles que estão no poder.

Essa mentalidade é especialmente evidente durante as celebrações anuais da vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista em 1945, quando uma histeria quase carnavalesca toma conta do país. Há desfiles militares nas ruas, comemorações, concertos. Crianças do jardim da infância vestem uniformes militares. Autoridades trazem na lapela a fita preta e laranja de São Jorge, um símbolo da lembrança.

Os russos chamam a isso de "pobedobesie" ou "frenesi da vitória". As realizações soviéticas são os fatos que importam, e as partes indesejáveis da guerra – desde a colaboração entre Joseph Stalin e Adolf Hitler no começo do conflito até a vitória militar dos EUA sobre Japão – são ignoradas.

Sua cronologia passa por uma revisão. Para o resto do mundo, a guerra começou em primeiro de setembro de 1939, mas na Rússia, a Grande Guerra Patriótica, como é chamada, começou quando Hitler lançou um ataque à União Soviética, e terminou em nove de maio de 1945, com a capitulação da Alemanha nazista, e não com a rendição formal do Japão no final daquele ano.

Presidente russo, Vladimir Putin, cumprimenta soldados durante a parada do Dia da Vitória em 2018 em Moscou. O evento com imagens e símbolos soviéticos, marca o aniversário da vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial - Alexei Druzhinin/Sputinik/AFP - Alexei Druzhinin/Sputinik/AFP
Presidente russo, Vladimir Putin, cumprimenta soldados durante a parada do Dia da Vitória em 2018 em Moscou. O evento com imagens e símbolos soviéticos, marca o aniversário da vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial
Imagem: Alexei Druzhinin/Sputinik/AFP

Acentuar as realizações soviéticas durante a guerra é uma maneira de o governo dar aos russos aquilo que eles mais anseiam após a dolorosa humilhação de perder a Guerra Fria: o orgulho nacional. Pesquisas mostram consistentemente que a história é a principal fonte de orgulho para muitos russos.

O foco na vitória da União Soviética na guerra também legitima a intervenção militar da Rússia na Ucrânia em 2014. Desde que as demonstrações de 2013 da Euromaidan conduziram a realinhamento político ucraniano com a União Europeia, a máquina de propaganda russa vem trabalhando duro para classificar a mudança como um golpe neonazista coordenado pelo Ocidente. Os russos que assistiam ao noticiário na televisão estatal ouviram que forças fascistas ameaçavam a segurança de seus vizinhos eslavos: segundo a história, Moscou simplesmente teve que auxiliar milhares de russos étnicos que vivem na Ucrânia.

Enquanto isso, os elogios aos vitoriosos antepassados da Segunda Guerra Mundial reabilitaram parcialmente o antigo regime soviético. Retratos de Stálin com seu bigodão começaram a aparecer em desfiles militares, e as ruas foram ocasionalmente renomeadas em homenagem a ele.

Porém, o revisionismo não é apenas uma tendência social – é lei. Comparar os crimes da Alemanha nazista com os da União Soviética é proibido. Uma lei contra a reabilitação do nazismo, assinada pelo presidente russo Vladimir Putin em 2014, por exemplo, pune as pessoas por "intencionalmente espalhar falsas informações sobre as atividades da União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial" e "profanar símbolos da glória militar da Rússia". Mesmo sugerir que houve colaboração entre os nazistas e os soviéticos durante a guerra já é o suficiente para garantir uma multa.

A legislação lembra a "Lei da Memória" da Polônia, assinada pelo Presidente Andrzej Duda em fevereiro de 2018 (e mais tarde modificada após a indignação pública). Essa emenda visava àqueles que acusavam o país de cumplicidade nos crimes cometidos pelo Terceiro Reich em solo polonês. Os críticos alertaram que o governo de Duda poderia explorar a ambiguidade da lei para perseguir seus inimigos.

Por fim, a pressão internacional e interna forçou os legisladores poloneses a recuar e a rescindir sanções penais para os infratores. A situação é pior na Rússia, onde a lei antinazista de Putin já foi usada contra ativistas antigovernamentais.

Depois que desconhecidos, em um ataque, borrifaram o rosto do líder da oposição russa, Alexei Navalny, com um corante verde antisséptico, um de seus apoiadores compartilhou nas redes sociais uma imagem digitalmente alterada de um monumento da Segunda Guerra Mundial na cidade de Volgogrado coberto de tinta verde. Isso foi o suficiente para levar o sujeito à prisão domiciliar por profanar um símbolo da glória militar russa.

Um dos maiores perigos do revisionismo russo é que os capítulos mais dolorosos da história são mantidos no escuro. Sandarmokh, um local nas florestas do norte da Rússia, destaca-se como um caso particularmente ilustrativo. Em 1937 centenas de pessoas inocentes foram mortas lá durante as perseguições de Stálin. Desde a descoberta de um cemitério no local na década de 1990, as pessoas se reuniam lá todos os anos para um memorial em homenagem às vítimas. Em meados de 2018 eu também estive lá.

Não havia palco, apenas um pódio improvisado e um amplificador de som. Nem uma única autoridade local estava presente. Yuri Dmitriev, o historiador que havia descoberto o local da tragédia, estava na cadeia, acusado de assediar sexualmente sua filha adotiva. Os apoiadores de Dmitriev dizem que o caso foi inventado para puni-lo por ter revelado crimes soviéticos.

 O historiador russo Yuri Demitires, que dedicou sua vida à divulgação de crimes soviéticos, é escoltado em uma audiência judicial em Petrozavodsk, Rússia, em junho de 2018. Dmitriev foi acusado de agressão sexual, mas seus apoiadores afirmam que houve motivações políticas - Vladimir Larionov/Reuters - Vladimir Larionov/Reuters
O historiador russo Yuri Demitires, que dedicou sua vida à divulgação de crimes soviéticos, é escoltado em uma audiência judicial em Petrozavodsk, Rússia, em junho de 2018. Dmitriev foi acusado de agressão sexual, mas seus apoiadores afirmam que houve motivações políticas
Imagem: Vladimir Larionov/Reuters

Ao lado, enquanto escutávamos um discurso, um pelotão de cossacos em trajes típicos gritou com as pessoas que haviam se reunido para a comemoração. "Do que vocês estão falando? Parem com este fascismo!", gritaram eles antes de ir embora.

Algumas semanas depois, a Sociedade Histórica Militar Russa iniciou escavações no local. A organização, uma iniciativa governamental fundada em 2012, quer provar que pelo menos alguns dos corpos enterrados lá pertenciam a soldados do Exército Vermelho mortos a tiros pelos finlandeses durante a Guerra de Inverno.

Parece que a Rússia ainda não está pronta para reconhecer as páginas escuras de sua história. Ao invés de assumir a responsabilidade por seu passado, ela continua a revivê-lo. E isso dificulta ainda mais o futuro.

*Alisa Ganieva é escritora e ensaísta russa. É autora de "The Mountain and the Wall" e "Bride and Groom"

Este artigo faz parte da série Fator de Mudança: Pauta Global 2019 de fim de ano que inclui artigos de opinião, fotos e desenhos sobre eventos e tendências de 2018 que repercutirão não só em 2019, mas nos anos seguintes.