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OPINIÃO

Pânico sobre a "saidinha temporária" de presos despreza fatos e o direito

Celas da Ilha Real, que, junto com a Ilha do Diabo, abrigam uma antiga e temida colonia penal - RUBEN RAMOS/Getty Images/iStockphoto
Celas da Ilha Real, que, junto com a Ilha do Diabo, abrigam uma antiga e temida colonia penal Imagem: RUBEN RAMOS/Getty Images/iStockphoto

Especial para o UOL

21/09/2021 04h00

Todo ano somos inundados por notícias relacionadas à saída temporária de presos brasileiros, que circulam a rodo nos grupos de Whatsapp e nas redes sociais. A tônica é de pavor e revolta, com destaque quase exclusivo para fugas, crimes e para os presos famosos "beneficiados" pela medida, como se as próprias portas do inferno estivessem esgarçadas.

Mas vamos aos fatos. A saída temporária é um direito (não um benefício) concedido apenas às pessoas presas no regime semiaberto, com bom comportamento e que tenham cumprido um sexto da pena —ou um quarto, se reincidentes.

Entre os motivos legais que permitem as "saidinhas" estão a participação dessas pessoas em atividades que promovam o retorno ao convívio social, a frequência em ensino regular e a visita à família. Neste último caso, as saídas ocorrem, tradicionalmente, em feriados e datas festivas — razão pela qual se fala comumente de saída de Dia das Mães, Natal, por exemplo.

Esse não é um direito que pode ser exercido por qualquer preso. Menos de 17% estão no regime semiaberto no Brasil, e muitos destes não preenchem os demais requisitos previstos em lei para a saída temporária.

Ainda que 37 mil "beneficiados" pela "saidinha" no estado de São Paulo — conforme noticiado pelo UOL — pareça um número elevadíssimo, isso se deve mais às taxas estratosféricas de encarceramento do país do que à suposta leniência da lei ou do Judiciário. Lembrando que das 726 mil pessoas encarceradas no Brasil, quase um terço estão nas "masmorras" paulistas, segundo dados de 2017 do Depen (Departamento Penitenciário Nacional).

É por meio das saídas temporárias, das visitas familiares aos presídios e do sistema progressivo de cumprimento de pena (do regime mais rígido para o menos rígido) que são reduzidos os danos causados pelo aprisionamento e preservados alguns dos vínculos sociais da pessoa encarcerada.

Sem essa preparação para a liberdade, inviabiliza-se um dos principais objetivos da pena, que é "proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado".

Sem uma rede de apoio formada por amigos, familiares e comunidade, o egresso do sistema prisional tem pouquíssimas chances de quebrar o ciclo de vulnerabilização, criminalização e encarceramento.

Ao tomar a exceção como medida da regra, dando destaque desproporcional às fugas, crimes e ao perfil de alguns presos, liquida-se qualquer possibilidade de análise racional desse direito.

Em São Paulo, em média, 94,65% dos presos retornam espontaneamente para cumprir suas penas após as "saidinhas" — segundo dados obtidos pela Ponte Jornalismo por meio da Lei de Acesso à Informação.

E muitos só não voltam por conta de ameaças de morte, violências e pela crescente incapacidade do Estado de garantir um ambiente prisional minimamente digno e seguro.

Da mesma forma, aponta-se com escândalo para o fato de "estupradores" e "homicidas" fazerem juz à saída temporária, mas, em geral, ignora-se que, nem de longe, esse é o perfil da nossa população prisional. Menos de 3% das pessoas presas respondem por crimes contra a dignidade sexual e menos de 9% por crimes contra a vida, segundo dados do Depen.

Além disso, a gravidade e a reprovabilidade de um crime não significa perda dos direitos durante a execução da pena, nem que a pessoa esteja fadada à eterna repetição deles. A dignidade e a liberdade como regra seguem sendo as balizas — ainda que combalidas — do nosso sistema penal

Se não pensarmos como se dará a reinserção social desses indivíduos presos, que eventualmente serão soltos, só estaremos reforçando o clamor pela regressão civilizatória das penas perpétuas e das execuções sumárias.

O medo é sempre um mau conselheiro, e é ainda pior no que diz respeito às políticas de segurança pública e prisional.