Não digam que fui rebotalho / que vivi à margem da vida. Digam que eu procurava trabalho / mas sempre fui preterida. Digam ao povo brasileiro que meu sonho era ser escritora / mas eu não tinha dinheiro para pagar uma editora
Carolina Maria de Jesus
Na semana em que comemoramos o aniversário da escritora Carolina Maria de Jesus, nascida em 14 de março de 1914, revisitar seus textos nos interpela a pensar sobre o passado, o presente e o futuro. Em seus diários, poemas e composições musicais, Carolina simultaneamente apresenta uma postura insurgente contra os estereótipos que recaem sobre as pessoas negras, bem como sublinha que a realização de sonhos é uma necessidade humana inegociável.
Sua obra informa sobre um aspecto persistente na história do país: a tentativa de alijar pessoas negras, indígenas e pobres de espaços que possibilitam a melhoria de suas condições de existência. A escola é um desses exemplos, já que a educação formal sempre esteve presente nos inúmeros projetos emancipatórios da população negra. Ocorre que o racismo opera tanto para invisibilizar pessoas negras letradas (escravizadas e livres), quanto pelo apagamento das inúmeras iniciativas criadas com a finalidade de oferecer educação formal às pessoas negras, a exemplo da Frente Negra Brasileira (1931-1937) e do Teatro Experimental do Negro (1944- 1961).
Uma experiência que antecede a essas duas foi narrada pela historiadora Adriana Maria Paulo da Silva, no livro "Aprender com perfeição e sem coação: uma escola para meninos pretos e pardos na Corte". Em meados do século 19, na cidade do Rio de Janeiro, familiares de estudantes pretos e pardos realizaram um abaixo-assinado para que o professor deles, Pretextato dos Santos e Silva, continuasse lecionando e sua escola permanecesse aberta. A partir de 1854, a Inspetoria Geral da Instrução Pública criou normativas para a atuação do professor e o funcionamento das escolas.
O órgão definiu que todos os docentes da cidade deveriam passar por um exame, serem maiores de 25 anos, comprovar atestados de moralidade e apresentar declaração sobre os meios de vida nos cinco anos anteriores à petição. Os detalhes do processo demonstram como famílias negras — com baixo nível de instrução — visualizaram no exercício de Pretextato a possibilidade de seus filhos saírem da escola lendo. Por fim, a petição de Pretextato foi aceita. A escola funcionou até 1873, quando Pretextato foi despejado em decorrência de não conseguir pagar os aluguéis. Todo o material de trabalho de Pretextato foi penhorado pela Santa Casa de Misericórdia.
Infelizmente o desaparecimento de experiências como a do Pretextato não é um caso isolado. Na virada do século 19 para 20, o sistema escolar do Rio de Janeiro contava com diversas pessoas negras como professores, administradores e diretores. No livro "Diploma de brancura: política social e racial no Brasil (1917-1945)", o historiador Jerry Dávila analisa 400 fotografias produzidas pelo fotógrafo Augusto Malta (1864-1957) sobre os espaços escolares. Nessas imagens, Dávila percebe um padrão: durante as primeiras décadas do século 20, muitos(as) professores(as) eram negros(as); a partir de 1930, essas pessoas desaparecem das imagens.
Em 1920, mais de 80% dos(as) professores(as) de escolas públicas e privadas eram negros(as). Já nas décadas de 1930 e 1940, a maioria era formada por mulheres brancas. Isso se deve ao fato de que, a partir da década de 1930, os critérios de seleção dos/as professores/as que levavam em consideração a aparência. As pessoas deveriam evocar valores identificados com o moderno, profissional e científico. Tratava-se de um branqueamento materializado na escolha dos conteúdos e na seleção do corpo docente.
Modernização conservadora
As conexões entre racismo estrutural e o acesso à escolarização permanecem na ordem do dia. Os diagnósticos sobre efeitos da pandemia para educação apontam o prejuízo para a aprendizagem com agravante para a população negra. Em 2021, com base na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2012 a 2021, a organização Todos pela Educação divulgou uma nota técnica sobre os "Impactos da pandemia na alfabetização de crianças". Entre 2019 e 2021, ocorreu um aumento de 66,3% no número de crianças de 6 e 7 anos de idade que não sabiam ler e escrever. Em 2019, eram 1,4 milhão, número que passou a 2,4 milhões em 2021.
Em 2019, a quantidade de crianças pretas e pardas de 6 e 7 anos de idade que não sabiam ler e escrever eram de 28,8% e 28,2% do total, respectivamente. Em 2021, esses índices saltaram para 47,4% e 44,5%, respectivamente. No mesmo período, a fatia de crianças brancas na mesma situação aumentou de 20,3% do total para 35,1%. A questão que se coloca é: como os poderes públicos enfrentarão o problema?
Com a maior rede pública de ensino do país, o Estado de São Paulo divulgou em março deste ano os resultados do Saresp (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar de São Paulo) relativos ao ano letivo de 2021. A avaliação da Secretaria de Educação apontou que, na comparação com o ano de 2019, os estudantes do 5º ao 9ª ano do Ensino Fundamental e do 3ª ano do Ensino Médio não alcançaram a proficiência esperada. O secretário da educação, Rossieli Soares da Silva, resumiu a situação com a seguinte frase: "O que já era ruim ficou pior". Em outro momento, afirmou que "os dados da avaliação confirmam as perdas irreparáveis causadas pela pandemia e fechamento das escolas."
Será que é possível colocar tudo na conta da pandemia? Ou o fatalismo do secretário exprime uma face da exclusão no tempo presente?
Depois de anos de luta para democratizar o acesso, a desqualificação e a descrença na escola pública legitimam cortes orçamentários e a ampliação da privatização do ensino. O fato é que as crianças e adolescentes atualmente na educação básica estarão em dez anos projetando sonhos, pleiteando trabalho e vagas nas universidade. Essas pessoas não são rebotalhos. Então, a reparação precisa ser rápida.
*Mariléa de Almeida é integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros.
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