Topo

OPINIÃO

O Zé parte deixando vivo o gozo dionisíaco

Zé Celso  - Allan Calisto/Agencia F8
Zé Celso Imagem: Allan Calisto/Agencia F8

Erika Bodstein*

Especial para o UOL

06/07/2023 20h57

O Oficina é um monumento, um espaço vivo que pulsa a vibrante e revolucionária cidade de São Paulo. Zé Celso, o maestro condutor dessa nau dionisíaca, que navega desde 1958 como Companhia Teatro Oficina, nascida do encontro de frequentadores do Centro Acadêmico 11 de Agosto, ligado à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Renato Borghi, Etty Fraser, Amir Haddad e Fauzi Arap estavam presentes na fase de formação do grupo, que se tornou profissional em 1961, encenando A vida impressa em dólar, de Clifford Oddets. Peças de Tennessee Williams, Máximo Gorki e Max Frisch foram encenadas enquanto a ditadura se instaurava no Brasil. A partir de 1967, os autores brasileiros assumiram o protagonismo e desde então estão presentes nos trabalhos da companhia.

Um ano antes do AI 5 a companhia conheceu estrondoso sucesso com O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, dentro e fora do país, um marco que faz parte da aparição dos tropicalistas e do movimento de artistas e obras lançadas em várias frentes artísticas. Os anos 1960 terminaram com duas encenações antológicas de textos de Bertolt Brecht. A década seguinte foi movimentada pelo encontro com o grupo estadunidense Living Theatre (convidado por Zé Celso para vir ao Brasil), por encenação de Tchekhov, e pelo exílio imposto ao diretor, que passou alguns anos morando em Portugal. A invasão da polícia durante uma apresentação de Roda Viva entrou para história como um marco do horror e da tentativa política de destruição e aniquilamento do teatro brasileiro e de seus artistas. Mas o teatro comandado por Zé Celso tem a força
de voltar das cinzas, a força da Fênix. Passados exílio e enfraquecida a ditadura, o teatro ganha nova força e prepara a volta dos espetáculos.

Em 1984 o nome da companhia mudou para Teatro Oficina Uzyna Uzona e o prédio na Rua Jaceguai começou a ser reconstruído com um projeto do arquiteto Lina Bo Bardi. Lina assumia postura crítica ao sugerir o gênero masculino para marcar sua profissão, antecipando a discussão e iluminando o que hoje chamamos 'machismo estrutural', pois o valor dado aos profissionais do gênero masculino era desproporcional com relação às mulheres. Além do Oficina ela nos legou o MASP, o Museu de Arte Moderna da Bahia, o SESC Pompéia, e magníficos cenários, como o da Ópera dos Três Tostões, encenada no Teatro Castro Alves (BA) em 1959.

O ano de 1987 marcou meu primeiro encontro com o apoteótico Dionisoandrógeno. Fui para um ensaio aberto de As Bacantes no Teatro Oficina, que na época tinha arquibancadas de tábua e chão de terra arenosa. Conheci o Grande Terreiro da Rua Jaceguai antes da reforma feita por Lina Bo Barde. Caetano Veloso e Regina Casé estavam presentes na plateia, ele a meu lado, separado de mim por apenas uma pessoa, ela de frente para a gente. Eu tinha 19 anos e era muito, mas muito fã mesmo de Caetano, mas naquele dia não pude tirar os olhos da cena e essa medida me serve até hoje de guia para pensar o poder do teatro. Participando do ato como espectadora, o tempo todo fui envolvida pelo dionisíaco e jovem Marcelo Drummond na pele do deus do teatro e do carnaval. Naquele dia ele ofertava-se banhado em mel às bacas, no palco e na plateia, e eu me fartei naquela fonte lambendo seu corpo banhado em suor quente e melado. Ele ficou contente e de seus olhos saíam faíscas enquanto nós, homens e mulheres, o servíamos. Foi um batismo teatral público e dionisíaco. Isso um ano antes de eu entrar na EAD, a Escola de Arte Dramática. Tudo o que veio depois devo ao que senti naquele ensaio comandado por Zé Celso Martinez Correa.

Zé para mim era o Escolhido, o portador da chama de Dionísio, a presença mais nítida e possível do deus em meio ao concreto paulistano. Naquele ensaio percebi o mundo ao qual eu pertencia, e sobretudo a força do inescapável deus. Minha razão seria incapaz de não conduzir meu olhar a Caetano, mas o teatro era maior, era de outra ordem e esta havia instaurado uma magia em minha percepção, vinda da feitiçaria do mais potente terreiro paulistano. Senti no corpo o que sentiam as Bacas, eu não estava no comando, e ali passei a agir para saudar o teatro, cantando, gritando, pulando e dançando, soltando os meus longos cabelos negros ao vento: Evoé! De meus olhos também saíam faíscas. Vi gente arrancar a roupa e atravessar a fronteira, passando de espectador a ator. Ali foi concreta a visão do que mais tarde eu confirmaria com a leitura das obras de Fauzi Arap: não há pano de boca, nada separa palco e plateia, vida e arte contaminam-se, uma incide sobre a outra, ininterrupta e reciprocamente.

Meu grupo de teatro amador pertencia ao forte movimento dos anos 1980 e havíamos arrendado o Teatro Cenart em São Paulo, em 1986, no Bixiga, enquanto residíamos no Edifício 11 de Agosto da Faculdade Direito, em moradas compartilhadas e coletivas. Para nós, o Oficina era o templo e o tempo da grande revolução. Seus artistas, os heróis que haviam representado nossa voz na luta contra a cruel ditadura militar que assolou o país nos anos 1960, 1970, e que até hoje teima em mostrar suas garras. E o Oficina, a Uzyna Uzona, nunca parou de combater os males, nem de lutar com arte e não com armas por um lugar ao sol coletivo. Trata-se de um teatro absolutamente hamletesco, no sentido ético de ajuste da palavra ao gesto. Vanguarda e engajamento são adjetivos justos, mas insuficientes para render tributo a esse monumento do teatro, que agora merece a adesão imediata de toda a sociedade brasileira para que a boa luta do Zé vença o capitalismo. Que seu sonho de construção da Grande Praça venha a ser concretizado o quanto antes, reparando no hoje a imensa dívida que o país tem com sua luta, e com sua companhia teatral, que sempre foi e sempre será de todos nós, seus herdeiros e herdeiras.

Ponto de encontro de toda a classe teatral, o Oficina sempre me proporcionou momentos de vida intensa. Todos os grupos de alunos que tive ao longo da vida foram levados por mim e por Valéria Marchi ao Oficina para sua Iniciação, e suas experiências foram e são diversas e marcantes. Lá vi atuações memoráveis de Renato Borghi, Júlia Lemmertz, Alexandre Borges, Denise Assunção, Leona Cavalli, Pascoal da Conceição, Aury Porto, Beatriz Azevedo (que eu conheci menina, na peça O charme discreto do Cafundó, feita na UNICAMP, em 1984). As histórias mais engraçadas e verdadeiramente teatrais que costumo contar envolvem eventos no Oficina.

O Zé iluminou e botou prumo para aqueles que se dedicam a estudar a história da arte e a história do teatro brasileiro. Ele levou ao palco O Rei da Vela e cravou o nome de Oswald de Andrade, seu gênio e seu teatro como o verdadeiro pajé do teatro moderno brasileiro, o fundador. Enquanto livros apontam o nome de outro, a cena e o palco mostram a evidência. Recentemente fui convidada a guiar um processo na Oficina Oswald de Andrade, em celebração dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, e os nossos estudos das obras não dramáticas de Oswald foram feitos com deferência aos que nos precederam e inspiraram: o Oficina do Zé, e também os estudos de Beatriz Azevedo, cria do Oficina e do Zé.

Nós que não éramos nascidos em 1967 tivemos a imensa boa sorte de termos visto a nova encenação d O Rei da Vela, feita em 2017, em celebração dos 50 anos da primeira montagem. E o privilégio de termos reconhecido a presença da cenografia no disco O Estrangeiro, lançado pelo tropicalista Caetano, em 1989. Destaque para a aparição do Zé no videoclipe da música tema. São incontáveis as contaminações e os encontros de artistas brasileiros com Zé e com o Oficina, trata-se de um gigante e seu legado espalha-se por tudo. Teses e estudos celebram sua obra por todo o país. Muito já foi feito e muito mais há de ser realizado por aqueles que tiverem o chamado de visitar o rico acervo do grupo, hoje hospedado pela UNICAMP. Acesso aqui.

Grande foi o impacto de Ham-let em minha vida. Acompanhei os ensaios que no início chegaram a durar 12 horas, nas instalações do que viria a ser o SESC Pompéia. Com amigos da EAD no elenco, fiz parte de um grupinho que acompanhava eventualmente os trabalhos. Com os cortes, a peça chegou a 8 horas, depois a 6h, mais ou menos, formato levado à estreia. O massacre dos 111 presos do Carandiru estava presentes em cena, nos televisores instalados ao longo do terreiro eletrônico. Rosencrantz e Guildenstern eram enviados para o Brasil. E o fantasma do Rei, o velho pai, Zé-Hamlet pedia ao filho Marcelo-Hamlet para vingar o crime, para vingar seu teatro. E o teatro venceu! Aquela peça marcou a nova estreia do prédio da Jaceguai como hoje o conhecemos, com a arquitetura magnífica e mágica de Lina Bo Bardi. Assisti ao
espetáculo incontáveis vezes. Muitos anos depois, com o duro golpe parlamentar que derrubou a presidente Dilma Rousseff em 2016, meu nano coletivo, nossa minúscula ilha de resistência, levou à cena Hamlet-ex-máquina (Oswald de Andrade, 2017. Acesse aqui. Nossa forma de combater o golpe, buscando somar nossa força à dos que nos precederam: William Shakespeare, Bertold Brecht, Heiner Müller, Zé Celso. Foi com o Ham-let do Zé, e com o Mare Nostrum, de Fauzi Arap, que aprendi que a peça de teatro é feiticeira e que ela tem poderes ocultos. Na verdade, confirmei o que já sabia, mas essa confirmação é necessária e todo processo de aprendizado é assim, apenas confirmamos o que já sabemos, língua, gramática, tudo. A feitiçaria de Hamlet tem o poder de trazer de volta os fantasmas, e Valéria Marchi e eu queríamos voltar para o teatro, depois de tanto tempo dando aulas. E voltamos.

Eu imagino que hoje, nesse momento de dor pela partida do Zé, cada artista brasileiro tributário do Oficina, de Dionísio, e de seu mais fogoso representante na Terra, esteja dedicado a trazer para o mundo manifestações. Penso que podemos formar um coro potente que a uma só voz exija de todos os poderes governamentais o decreto da instalação da Grande Praça no bairro do Bixiga. Sempre foi uma grande luta do Zé, que agora passa à força do coro, da coletividade, e instaura-se como uma convocação de todas as forças no país para que o Oficina ganhe a causa. Se eles ganham, ganhamos todos. Não há "eles", somos e sempre fomos "nós". Tudo está conectado. A mais bela Praça de São Paulo deve existir para que haja espaço para muitas celebrações ao deus do teatro.

Em meio a tantas possibilidades, memórias, imagens, tenho de escolher uma para fechar esse texto, e tudo aponta para a lembrança da presença do meu amigo Aury Porto, que convenceu o Zé a montar Os Sertões de Euclides da Cunha. Certa vez ele disse que teatro é "uma orgia, no sentido da troca, um estado permanente de namoro, de tesão". No último sábado foi uma peça dele que assisti: Meu nome: Mamãe. Nossas mães estão com alzheimer e nós pensamos em como ajudá-las a viver a presença em meio às ausências. No teatro, último dia da peça no SESC Pinheiros, revi velhos amigos e uma nova amizade começou ali. E hoje esse meu novo amigo, um dos gigantes do teatro brasileiro, foi quem me deu a triste notícia da partida do Zé. Pascoal da Conceição e eu falamos muito no Ham-let nesses dias. Foram dias intensos em que lembrávamos da grande encenação do genial Zé, da história incrível que levou o Pascoal da EAD ao Oficina, em 1981, e da minha história com o Oficina. Estamos todos conectados, e a grande revolução só é possível quando compreendermos isso profundamente, o que agora é urgente e muito necessário.

Enquanto aguardo notícias dos funerais de "nossa Fênix que acaba de partir para a morada do sol", penso no dezembro daquele mesmo ano de 1987, em que nós cercamos a Praça da Paz no Rio de Janeiro, dando um grande abraço em roda, com toda a classe teatral presente. Eu estava lá, vestida de branco, protestando contra a violência virulenta que havia tirado a vida de Luis Antonio Martinez Correa, diretor de teatro, irmão do Zé, vítima da onda de assassinatos contra homossexuais, na época em que o vírus HIV dava sinais nos primeiros casos da AIDS. A truculência não terminou. A homofobia e os crimes continuam. E a luta ganha hoje outros contornos, mas segue. Nós não somos truculentos, nós somos da Paz e do Amor. E assim celebraremos o voo da Fênix que será recebida no Olorum.

amor de muito amor sempre"

Para mais informações: @oficinauzynauzona.
• As citações feitas foram retiradas de postagem no IG da trupe, na data de hoje

(*) Diretora de Teatro; Pesquisadora (FFLCH-USP); Professora (www.escolalivredeartes.com.br/ @erika.bodstein)