OpiniãoNotícias

Marco temporal: Conciliação forçada é uma nova face da violência histórica

Na tarde de 28 de agosto de 2024, a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) tomou uma decisão histórica ao se retirar da mesa de conciliação criada pelo ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), para discutir a Lei 14.701/2023, nomeada entre nós, povos indígenas, como a "Lei do Genocídio Indígena".

Essa decisão não foi tomada de forma precipitada; pelo contrário, foi fruto de uma reflexão profunda sobre o que significa participar de um processo que, desde o início, foi marcado por desrespeito, falta de transparência e, acima de tudo, uma clara tentativa de impor uma "conciliação forçada" sobre direitos que são inegociáveis.

Nós, povos indígenas, não podemos aceitar que direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988 sejam tratados como meros pontos de negociação. Nossas terras são inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis. Não estamos falando apenas de pedaços de terra; estamos falando da nossa existência, da nossa cultura, da nossa forma de vida. E é inadmissível que qualquer instância, mesmo o Supremo, trate esses direitos com a leveza com que se negocia mercadorias.

Tratar com aqueles que veem os territórios indígenas como meros ativos financeiros, enquanto ignoram deliberadamente as violências sofridas por nossos povos, é como tentar negociar com o algoz que lucra com a destruição. Há uma incompatibilidade intrínseca entre quem tem interesses econômicos arraigados na exploração das terras e dos recursos naturais e aqueles que lutam pela preservação de sua existência e cultura.

Não se pode esperar justiça e equidade quando o poder de decisão é dado aos que se beneficiam da continuidade das agressões. Essa dinâmica perversa transforma a mesa de conciliação em um palco de opressão, onde os direitos fundamentais são tratados como mercadorias a serem negociadas, e não como princípios invioláveis.

Durante o Acampamento Terra Livre deste ano, cujo tema foi "Nosso Marco é Ancestral: Sempre Tivemos Aqui", reafirmamos que nossos direitos não são fruto de concessões temporais ou políticas passageiras. Eles são a expressão de nossa presença contínua neste território, desde tempos imemoriais. Nossa conexão com a terra é ancestral e transcende qualquer tentativa de redução ou limitação imposta por interesses externos.

Como manifestado no ATL, nossos direitos territoriais são anteriores à própria formação do Estado brasileiro e são parte fundamental da nossa identidade e sobrevivência.

O Brasil vive uma crise ambiental sem precedentes, exacerbada pelas queimadas que hoje devastam o país. E todos nós dependemos desses ecossistemas para sobreviver.

De acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), cerca de 80% da biodiversidade mundial encontra-se em terras indígenas e comunidades locais. Esse dado não é apenas uma estatística; ele é um testemunho de que nós, povos indígenas, somos os verdadeiros guardiões da natureza. Nossa responsabilidade pela preservação desses ecossistemas é imensa, mas não somos os únicos beneficiados pelas riquezas da biodiversidade. Todos dependemos dela, e é lamentável que o relador do STF não reconheça plenamente o papel vital que desempenhamos na proteção do meio ambiente.

Continua após a publicidade

As queimadas que assolam o Brasil hoje não se limitam mais aos territórios indígenas e comunidades tradicionais; elas extrapolam esses limites, invadindo as cidades e forçando a população urbana a vivenciar o que nós temos enfrentado há anos: a destruição de ecossistemas vitais, a poluição do ar e a ameaça constante à vida e ao bem-estar. Ignorar essa realidade e continuar com um processo de conciliação que não respeita nossos direitos é comprometer o futuro de todos.

Os juízes instrutores, ao tentar nos impor uma conciliação com aqueles que historicamente têm interesses econômicos em nossos territórios, parece desconsiderar as implicações mais profundas e as consequências dessa postura.

Como podemos negociar com aqueles que têm interesses financeiros em nossa destruição? Como se pode conciliar com quem escolhe a violência como método de dominação? Este processo não é apenas injusto; ele é uma repetição moderna das tentativas de colonização que sofremos há séculos.

Hoje, são os povos indígenas que estão sob ataque, mas amanhã, pode ser qualquer outro direito fundamental que estará em risco.

É importante dizer que os povos indígenas sempre estiveram abertos ao diálogo. Estivemos presentes nas audiências organizadas pelo ministro relator, mas, ao longo dos trabalhos, diversas violências discursivas foram proferidas contra nós, ressaltando o racismo institucional presente naquele espaço.

Continua após a publicidade

Foram feitos diversos pleitos no processo para garantir a participação indígena, mas todos foram ignorados. Ao anunciarmos nossa retirada, fomos surpreendidos com a notícia de que o juiz decidiu substituir a parte autora da ação por terceiros, como se nós, indígenas da Apib, estivéssemos ali apenas de modo decorativo. Além de esse comportamento evidenciar o caráter forçado da conciliação, fica evidente o total desrespeito às normas jurídicas do direito brasileiro.

Nossa retirada da mesa de conciliação não é um ato de desistência, mas sim de resistência. Não nos submeteremos a mais uma violência do Estado brasileiro, e acreditamos no plenário da Suprema Corte. Continuaremos lutando pelos nossos direitos, pelos nossos territórios e por nossa sobrevivência. E contamos com o apoio de todos aqueles que compreendem a gravidade da situação e que se solidarizam com nossa causa.

Ainda estamos vivos, e continuaremos lutando. Não desistiremos de nossas terras, do usufruto exclusivo das riquezas dos rios, lagos e solos, do direito de não sermos removidos de nossos territórios e do direito de termos nossos próprios modelos de desenvolvimento.

Não permitiremos mais que o projeto dos neocolonizadores nos atravesse e nos arrase. Lutamos pelo direito à diversidade, que deve incluir radicalmente todos os setores da sociedade brasileira.

Todos nós dependemos dessas florestas e desses ecossistemas para sobreviver. Portanto, a responsabilidade de preservá-los é coletiva. Cabe a cada um de nós garantir que a biodiversidade que nos sustenta seja protegida e respeitada, não apenas em benefício dos povos indígenas, mas em benefício de toda a humanidade.

Este é o momento de nos unirmos, de sermos ecoadores da voz daqueles que sempre foram silenciados, de lutarmos por um Brasil que respeite seus povos originários e que preserve os recursos que garantem a vida.

Continua após a publicidade

Não se trata apenas de uma luta indígena; trata-se de uma luta por justiça, por igualdade, por sobrevivência. Se o presente é de resistência, que o futuro seja de transformação. E essa transformação começa agora, com cada um de nós.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Deixe seu comentário

Só para assinantes