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Análise: O governo Lula e a ascensão de classes no Brasil

Cláudio Gonçalves Couto*

03/01/2011 07h00

Uma análise política do governo de Luis Inácio Lula da Silva poderia considerar diversos aspectos, desde a forma como se deu a relação desse presidente com as instituições políticas representativas (claramente de natureza não populista, a despeito das assertivas de alguns de seus críticos), até a execução de políticas públicas específicas (como educação, saúde, política econômica ou política externa). Tendo de fazer uma escolha em virtude das limitações deste espaço, opto por chamar atenção para um traço particularmente importante deste governo, talvez o mais relevante de todos no que diz respeito ao longo curso histórico.

A administração de Lula representou um ponto de inflexão crucial nas relações entre as classes sociais no Brasil, tanto no que diz respeito às consequências da luta política mais ampla para a ocupação de posições de poder, como no que concerne a uma mudança no regime de políticas públicas atinentes aos setores mais pobres da população. E, tanto num caso como em outro, para além das questões atinentes ao malfadado populismo, Lula se diferencia tremendamente de Getulio Vargas, a quem ele costuma com certa frequência comparar-se e ser comparado. Estabelecer esta comparação, ressaltando as diferenças, ajuda-nos a compreender o significado histórico do governo Lula sob o aspecto aqui enfatizado.

No que concerne à luta pelos espaços de poder, a chegada de Lula e de sua entourage de sindicalistas ao Planalto representou um momento fundamental no processo de circulação de elites (para utilizar a terminologia do sociólogo italiano Vilfredo Pareto) no Brasil. A circulação de elites caracteriza-se pela ascensão a posições destacadas na sociedade (em particular no Estado) de lideranças das classes subalternas, a chamada não elite, que assim passam a constituir-se elas mesmas em parte da nova elite que se forma. Esse processo é acompanhado pelo declínio de membros decadentes da velha elite e corresponde às mudanças estruturais pelas quais passa uma sociedade. Assim, a cada ordem social corresponde certa composição da elite. A chegada ao poder governamental de lideranças oriundas da classe trabalhadora organizada representa uma mudança crucial em nossas relações de poder, indicando o alcance de um patamar inaudito de democratização política - na medida em que a inclusividade do sistema político aumenta consideravelmente, abarcando setores historicamente excluídos. E, se como aponta Carl Schmitt, a democracia é o regime dos iguais, a incorporação de novos setores à elite dirigente implica finalmente sua conversão à condição de iguais.

Reside aí uma das diferenças fundamentais entre Lula e Vargas, pois este era um representante das elites tradicionais - ainda que não de seu setor hegemônico, que era a elite cafeeira paulista. Mais do que (como Lula) culminar um processo de democratização social por meio do qual novos setores ascenderam a posições de destaque, Vargas antecipou-o e logrou controlá-lo, lançando as bases institucionais que permitiram administrar a emergência da burguesia industrial e a expansão da classe trabalhadora urbana. Vargas e Lula concretizaram de forma antagônica a máxima lampedusiana de “mudar para que nada mude”; enquanto Getulio a seguiu ao pé da letra, Luis Inácio inverteu-a: “nada mudou para promover mudanças”. O “nada mudar” refere-se ao caráter conservador de parte de seu arco de alianças, incorporando a posições governamentais segmentos centrais de nossas oligarquias regionais, como Sarney, Calheiros, Barbalho, entre outros.

Já as mudanças promovidas por Lula são atinentes à considerável inflexão que teve, durante seu governo, a distribuição de renda e o peso relativo das classes sociais. A redução da desigualdade social apontada por diversos estudiosos do tema, como Marcelo Neri, ocorreu sem o impacto redistributivo automático que o fim da alta inflação teve poucos anos antes, graças ao Plano Real de Fernando Henrique Cardoso. O que houve com Lula foi política pública de efeito diretamente redistributivo, transferindo riqueza dos setores mais aquinhoados aos menos afluentes. Isto decorreu não apenas da expansão e aprofundamento das políticas de transferência direta de renda aos mais pobres, como o Bolsa Família, mas da elevação real do salário mínimo e do aumento dos empregos formais. Criou-se um novo arco de interessados e, consequentemente, um novo regime de políticas públicas nesse campo, o que tornará difícil sua reversão por futuros governos, mesmo que do campo conservador.

Um desdobramento desta política pública foi a ascensão de um grande contingente dos mais pobres à assim chamada “classe C”, ou a baixa classe média. Nisto, Lula novamente se diferenciou de Vargas, pois não apenas estabeleceu a regulação necessária para absorver as novas classes emergentes geradas pelo próprio desenvolvimento do país, mas alavancou a própria ascensão de classe. Vê-se aqui o desdobramento nas políticas públicas, e em suas consequências sociais, da inflexão na disputa pelas posições de poder causada pelo processo de circulação de elites. Como dificilmente futuras administrações terão como reverter este quadro, que deve se aprofundar durante a gestão de Dilma Rousseff, talvez esteja aí o mais importante dos legados da “era Lula” para a sua posteridade.

*Cientista Político, professor do Departamento de Gestão Pública da EAESP-FGV e pesquisador do CEPESP-FGV.