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Um juiz não pode simplesmente atender a vontade da sociedade, diz De Sanctis, da Satiagraha

Fausto De Sanctis é juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região - Avener Prado/Folhapress
Fausto De Sanctis é juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região Imagem: Avener Prado/Folhapress

Vinicius Konchinski

Do UOL, no Rio

03/04/2016 06h00

O juiz Sergio Moro, responsável pelos julgamentos da Operação Lava Jato, é hoje o magistrado mais famoso do país. Há menos de dez anos, porém, quem ocupava esse posto era Fausto De Sanctis, juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (segunda instância da Justiça Federal de São Paulo e do Mato Grosso do Sul).

Enquanto trabalhou na 6ª Vara Criminal da Justiça Federal de São Paulo, De Sanctis foi responsável por julgar e autorizar algumas das maiores operações contra corrupção e lavagem de dinheiro realizadas na primeira década do século 21. Atuou no caso MSI/Corinthians, que apurou suspeitas de lavagem de dinheiro por meio de uma parceria entre o clube e um grupo de investidores; na Operação Castelo de Areia, que investigou um esquema de corrupção envolvendo políticos e a construtora Camargo Correa; e até na Operação Satiagraha, cujo um dos réus foi o banqueiro Daniel Dantas.

Por seu trabalho em todos esses casos, De Sanctis acabou se tornando foco de admiração e contestação. Virou alvo de queixas formais de réus e viu alguns dos processos que julgou serem completamente anulados após a Justiça verificar ilegalidades em coleta de provas e no uso de delações anônimas.

Em entrevista concedida ao UOL na última quinta-feira (31), ele atribuiu essas anulações a entendimentos equivocados de tribunais superiores sobre o combate a crimes político-econômicos. "Tribunais superiores não estavam acostumados a tratar com a criminalidade econômica, que estava sendo combatida de forma eficaz em varas especializadas", afirmou ele. "Hoje, isso mudou."

Em mais de uma hora de conversa, De Sanctis também lembrou-se das dificuldades em trabalhar em casos judiciais polêmicos. Evitou comentar diretamente a atuação do colega Moro. Ressaltou, contudo, diferenças entre a sua conduta e a do juiz da Lava Jato. “Houve divulgação da lista, a qual coloca políticos como suspeitos de terem recebido propina. Eu jamais teria divulgado”, disse.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista:

UOL: O senhor conhece o juiz Sergio Moro?

Fausto De Sanctis: Eu o conheci no contexto da criação das varas especializadas em crimes de lavagem de dinheiro. Elas foram criadas em 2003. Eu era titular de uma dessas varas em São Paulo. No início, os juízes delas se reuniam semestralmente em Brasília para trocar informações. Lá, tive contato com Moro. 

O que o senhor pode falar sobre ele?

Moro sempre se mostrou bem interessado em questões técnicas, na aplicação do melhor direito e sempre invocou muito o direito norte-americano. Ele é uma pessoa reservada e discreta. 

Moro é hoje o juiz mais famoso do país. O senhor já teve essa notoriedade. Como era viver e trabalhar assim?

Eu andava na avenida Paulista e as pessoas me paravam. Eu ia dar uma palestra a outros juízes e me pediam autógrafo. Nessa situação, é preciso fazer um exercício muito frequente de espelho. Não se pode perder o chão. Quando a pessoa fala ‘eu sou o cara’, começa a ter sua atuação comprometida. 

A voz das ruas influencia o juiz?

Sempre agi tecnicamente. Você não pode atender pura e simplesmente a vontade da sociedade. A multidão tem vontades não legítimas, não aceitas no Estado Democrático. Uma pessoa quer se jogar de um prédio, forma-se uma multidão e grita: "Se joga". Você não pode se envolver nessas vontades antissociais.

Até onde um juiz pode se aproveitar do reconhecimento, colaborar com a sociedade (dando palestras, por exemplo) e, ao mesmo tempo, manter a distância necessária para julgamentos?

Olha, eu não gostava de dar entrevistas, por exemplo. Aí veio a Operação Satiagraha (2008). Uma assessoria do tribunal chegou ao meu gabinete e me disse: "Doutor Fausto, o senhor precisa dar entrevista para as pessoas saberem quem é o juiz do caso. Senão o senhor vai ser destruído". Fui orientado a não falar sobre caso concreto, mas que mostrasse que eu sou um juiz técnico, que mostrasse o funcionamento da vara. Esse tipo de exposição é positiva. Agora, existem limites. Não é recomendável que um magistrado participe de movimentos políticos, seja da linha que for. Não é recomendável que ele dê um ‘curtir’ na internet mostrando uma tendência política. Suas decisões passarão a ser contestadas, e isso não pode acontecer. Os limites estão nos princípios técnicos e princípios éticos.

O senhor disse “ser destruído”. Como isso pode acontecer?

Desde a invasão a sua vida pessoal, tentativas de arranhar a sua reputação e outras coisas. Atuando num caso de grande repercussão, você se expõe muito.

O trabalho do juiz também passa a ser mais contestado. O senhor, por exemplo, foi alvo de representações ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Respondi 20 representações. Todas foram arquivadas.

O senhor teve julgamentos anulados. Por que isso aconteceu?

Eu trabalhei em 38 casos de repercussão nacional. Cinco deles foram anulados. Acontece que os cinco anulados foram os mais rumorosos: Satiagraha e Castelo de Areia estão entre eles.

O que posso dizer é que o ambiente jurisdicional era completamente diferente do de hoje. Na época, havia um ambiente em que o reforço de todo e qualquer direito do réu era ressaltado pelo Judiciário, não levando em conta o direito da sociedade de ver alguém punido por ter descumprido uma lei. Imagine um pêndulo. De um lado, o interesse do réu. Do outro, o da sociedade. Na época, o pêndulo estava voltado só para a defesa do réu.

Como está o pêndulo hoje?

Hoje, se ele não está do outro lado (a favor da punição dos réus), ele está ao menos no meio. O ambiente mudou.

Críticos da Lava Jato dizem que o pêndulo está a favor da condenação.

Na Lava Jato, há pessoas que foram condenadas, e outras, absolvidas. Ou seja, não há uma sistemática para condenação. Há uma atuação do Ministério Público, da Polícia Federal e da Receita Federal. Há um juiz fazendo o controle constitucional das medidas de investigação, tomando conhecimento dos fatos e os julgando. As decisões são corretas até porque quase todas estão sendo confirmadas em tribunais superiores.

Há críticas quanto a vazamentos de informação. Fazem sentido?

Não posso falar. Moro tem uma linha de atuação e tenho a minha. Houve divulgação da lista, a qual coloca políticos como suspeitos de terem recebido propina. Eu jamais teria divulgado. Já houve uma comissão do Congresso Nacional em minha sala para me pedir cópia de interceptações telefônicas. Eu neguei. Sabia que ela poderia ser usada indevidamente. Um uso político e não técnico. Já fui acusado de ser arbitrário por conta dessa negativa. O Judiciário tem outro entendimento disso hoje.

O senhor atuou em um caso envolvendo a construtora Camargo Correa, que está envolvida na Lava Jato hoje. Como é ver uma empresa que poderia ter sido condenada em 2009 estar sendo julgada quase sete anos depois?

(Silêncio) Olha, existe o juiz e o cidadão Fausto. Um não pode contaminar o outro. Acontece que sou uma pessoa comum. Eu via, como cidadão, frustradas as minhas expectativas. Mas, como juiz, eu tinha que fazer um juízo técnico. Jamais poderia deixar de ser juiz técnico por um inconformismo de cidadão.

O fato de, finalmente, grandes empresários estarem no banco dos réus e condenados é um legado da Lava Jato?

Não é um legado. É uma esperança. Mas fica um alerta. Ao mesmo tempo em que surge esperança, existe a readaptação do criminoso. 

Como?

Fazendo lobby no Congresso para mudar lei, para que o Código de Processo Penal não seja tão eficaz, para mudar regras de interceptações telefônicas, mudar acordos de leniência –isso, aliás, está sendo mudado agora, o que muito preocupante, já que empresas não precisarão mais admitir fatos. Nós não chegamos a lugar nenhum ainda.

O país está hoje vidrado em decisões de tribunais. É a Lava Jato em Curitiba, o rito impeachment no STF, o processo contra Eduardo Cunha. Há um papel exacerbado do Judiciário sobre os rumos do país?

Nos Estados Unidos, todos falam que o pilar basilar da democracia é o Judiciário. Isso não será diferente no Brasil. O que acontecia é que o Poder Judiciário estava ausente, e ele precisa estar presente. É inevitável que o Judiciário assuma o protagonismo. A democracia moderna exige um Judiciário atuante.