Análise: Falta de perspectiva de fim da crise política gera alienação da sociedade
A sucessão diária de casos de corrupção envolvendo políticos de todas as esferas pode fazer com que a população fique apática, levando-a a não reagir ante os escândalos e, por fim, acabar se acostumando a tais fatos, por mais graves que sejam. Essa é a análise de especialistas ouvidos pelo UOL a respeito do delicado momento vivido no país.
A atual crise abrange acusações de propinas, indiciados na Operação Lava Jato e delações premiadas que colocaram o governo Michel Temer (PMDB) na berlinda, mas é apenas um desdobramento de uma fase que teve início há 12 anos, com o mensalão.
Há mais de uma década, semanalmente, os veículos de comunicação nacionais e estrangeiros trazem reportagens detalhando algum desvio de conduta de políticos e também de empresas, tanto estatais (como a Petrobras) quanto grandes grupos privados (como a construtora Odebrecht e o grupo J&F, pivô da mais recente colaboração premiada).
Ao mesmo tempo, cresce a visão negativa da população em relação aos políticos, gerando questionamentos que, se não manifestos nas ruas, reverberam nas redes sociais. Esse grupo, segundo analistas, é muito maior do que os declaradamente de esquerda ou de direita.
"Crises como essa que a gente vive, que tem seu epicentro em escândalos, têm duplo efeito. De um lado, elas mobilizam a participação da sociedade, à medida que despertam indignação. De outro, à medida que se estendem, sem a perspectiva de um momento de resolução, geram uma certa alienação. As pessoas continuam preocupadas, mas aos poucos vão se desligando, se desconectando", afirma o cientista político Antonio Lavareda.
Para a psicanalista Maria Rita Kehl, o debate sobre a corrupção deve ser politizado. "O arbítrio, o abuso, os desmandos, vêm de muito longe. O mais grave, a meu ver, é a perspectiva de a sociedade brasileira se acostumar com eles [escândalos], porque nos parecem impossíveis de mudar, e só se indignar com a corrupção porque ela afeta indiretamente nosso bolso. Se não politizarmos o debate sobre a corrupção, o Brasil não vai se livrar nem dela nem dos males que a circundam", opina.
Se não politizarmos o debate sobre a corrupção, o Brasil não vai se livrar nem dela nem dos males que a circundam
Maria Rita Kehl, psicanalista
Com a experiência de quem já assessorou dezenas de políticos em mais de 90 campanhas eleitorais no Brasil e no exterior, sobretudo as de partidos de direita, Lavareda diz que o interesse pela política no país é historicamente baixo, fruto da pequena capacidade dos partidos de mobilização.
Segundo seus estudos, nem 30% dos brasileiros manifestam preferência por algum partido, número muito inferior aos 81% dos norte-americanos que se declaram democratas ou republicanos.
Com viés à esquerda, Maria Rita Kehl faz análise diferente quando perguntada se a crise é catalisadora do desinteresse da população pela política. "O que eu vejo, empiricamente, é o contrário: as pessoas têm saído às ruas, em número cada vez maior", afirma. Seu alvo é a mídia: "Será que a imprensa não está exageradamente cautelosa com o enorme interesse das pessoas pela política? Com medo de perder hegemonia como formadora de opinião? Afinal, hoje, sites e blogs também divulgam informações que não saem nos jornais e nas TVs".
Embora observe que a população está desestimulada em participar do processo político, o cientista político Fernando Abruccio, docente e pesquisador da FGV (Fundação Getúlio Vargas), afirma que um dos fatores determinantes é a baixa escolaridade brasileira.
"A gente não sabe ao certo qual é a medida do acompanhamento [da política]. No Brasil, certamente é a menor da América Latina, porém, não é por acesso à informação, que chega até as camadas mais pobres. Não é essa a questão. É a de ter uma educação para usar esse acesso no debate político", diz Abruccio.
Antipolíticos e apolíticos
Em comum, os especialistas afirmam que a visão negativa da população sobre os políticos do país cresce a cada dia. Apesar de parecer, num primeiro momento, contraditória, essa lacuna abre espaço para dois tipos de atuação: os que se declaram antipolíticos e os mais tradicionais, segundo Fernando Abruccio.
"Quanto mais se estende o conjunto de escândalos de diversos partidos, pode gerar um sentimento de que 'todos são iguais' para a população. E quem se beneficia são os autodeclarados antipolíticos, tal como [o prefeito de São Paulo, João] Doria e aqueles que o eleitorado gosta por raízes ideológicas, tal como Lula", afirma.
Maria Rita Kehl defende que a população participe mais da vida política. "Ou então, se não estão a fim de acompanhar --todos têm esse direito--, deveriam ter a modéstia e o bom senso de não sair às ruas pedindo 'intervenção militar' ou apoiando o [deputado federal Jair] Bolsonaro, que, por sua vez, apoia a tortura", afirma.
Ela disse respeitar os apolíticos que se retiram para uma vida espiritual ou alternativa, tal como os hippies, ou os religiosos e reclusos. "Mas temo os 'apolíticos', cujas opiniões políticas são as de que, para acabar com os conflitos e contradições da luta pelo poder, é necessária uma saída autoritária, ou pior, truculenta", diz.
Quando perguntado sobre o motivo pelo qual a sociedade não foi às ruas após os recentes escândalos, Lavareda avalia que isso só não aconteceu devido a uma "luz no fim do túnel" que a redução da inflação trouxe.
"É um elemento desmobilizador. E as pessoas não conseguem ficar dando expediente três anos seguidos nas ruas, a não ser os sindicatos, movimentos sociais, grupos que fazem dessa prática a sua atuação política", afirma.
Já para Fernando Abruccio e Maria Rita Kehl, isso está mais ligado à ausência de participação de empresas e ao apoio da mídia --os atos de 2015 que resultaram no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) contaram, entre outros, com o apoio da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e veículos de comunicação.
Abruccio afirma que a tentativa de "segurar a fórceps" o presidente Temer no poder pode ser um catalisador para aumentar o movimento pelas eleições diretas.
"Pode ser que as denúncias venham a deflagrar isso. Ele [o movimento pelas Diretas] está muito fraco por não ter apoio da mídia, dos empresários. A cobertura [da imprensa] é ridícula, bisonha. Estamos num momento em que a sociedade sangrou tanto que é difícil juntar de novo. A mobilização social pode ganhar o país e segurar isso [os protestos] será muito mais difícil do que sair ileso do Tribunal Superior Eleitoral", afirma.
Já a psicanalista Maria Rita Kehl diz que os meios de comunicação terão papel determinante no desenrolar da crise. "Se a reação a esse desencanto será progressista –-há os que pedem antecipação das eleições, mudanças na Constituição, reformas políticas mais radicais-- ou regressiva --eleger um "xerife" autoritário, como se fosse uma boa solução--, depende também, em parte, do modo como os meios de comunicação analisam a crise."
"Acerto de contas" nas redes sociais
Se as ruas não estão tão cheias quanto nos atos de junho de 2013, iniciados contra o aumento das tarifas nos transportes públicos, e os de 2015 pelo impeachment, cresce cada vez mais a repercussão das redes sociais, sobretudo no que os especialistas classificam como reduto binário -–esquerda e direita. Porém, esse grupo reage de forma "sentimental", ao sabor das denúncias do dia.
Segundo o docente da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) Fábio Malani, o que está em maior número nas redes sociais são os que expressam posições políticas sem tomar partido por nenhum dos lados e postam apenas para mostrar seu descontentamento com a crise.
"Um elemento bastante interessante na crise política é que uma grande parte da sociedade não está nas páginas dos políticos dando curtidas ou os apoiando. Essa maioria tem estabelecido uma relação de total desconexão com a política institucional", afirma Malani.
Essa desconexão se traduz, segundo ele, na tentativa de desconstruir a imagem dos políticos. Ele diz crer que as próximas eleições, sejam elas quais forem (diretas, indiretas ou as de 2018), contarão com um ativismo nas redes jamais visto. "Tende a ser um debate da ética política. E será mais forte, numa espécie de 'acerto de contas' com os políticos, sobretudo os denunciados", afirma.
Já Lavareda avalia que as opiniões nas redes sociais não refletem a opinião pública. "Às vezes a grande mídia ecoa isso [descontentamento via publicações em redes sociais] e termina tendo uma interpretação equivocada. Captam o humor das redes sociais, mas que não tem predominância na sociedade, e termina afetando o humor da sociedade."
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