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MPF denuncia ex-agentes da ditadura que executaram militantes em SP

Imagem área do local onde funcionou o DOI-Codi do 2º Exército, em São Paulo - Google Earth
Imagem área do local onde funcionou o DOI-Codi do 2º Exército, em São Paulo Imagem: Google Earth

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

28/05/2018 16h34Atualizada em 12/10/2020 13h52

O MPF (Ministério Público Federal) em São Paulo denunciou nesta segunda-feira (28) dois ex-agentes da repressão na ditadura militar pelos crimes de homicídio duplamente qualificado e ocultação de cadáver. As vítimas foram dois opositores do regime.

Foram denunciados o então tenente-coronel Maurício Lopes Lima, hoje oficial da reserva do Exército, e o suboficial Carlos Setembrino da Silveira, os quais, segundo o MPF, participaram da operação que culminou na execução sumária de Alceri Maria Gomes da Silva, membro da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), e Antônio dos Três Reis de Oliveira, integrante da ALN (Ação Libertadora Nacional).

Tenente-coronel do Exército entre outubro de 1969 e o início de 1971, Lima foi dirigente da Oban (Operação Bandeirante) e, no DOI-Codi de São Paulo, segundo o MPF, foi o responsável pela busca de opositores e pela tortura deles durante esse período. O oficial chegou a ser acusado pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT), ex-guerrilheira do VPR, de ter presenciado a tortura dela e participado do ato de sua prisão.

Em entrevista ao jornal O Globo, em 2012, Lima admitiu que esteve com Dilma em três momentos - o primeiro, logo que ela foi presa. "Nós tínhamos a suposição de que ela era a Dilma e não tínhamos certeza. Chegaram para mim e disseram 'Maurício, você tem o dossiê da Dilma?". E eu: 'tenho'", afirmou, ao jornal.

A denúncia atual do MPF afirma que os dois militantes foram assassinados em maio de 1970, a tiros de metralhadoras, na casa onde viviam, no Tatuapé (zona leste de São Paulo), sem chance de defesa e por motivo torpe —justificativas para as duas qualificadoras do crime de homicídio. Eles nunca tiveram seus restos mortais localizados.

Na avaliação da Procuradoria, não cabe prescrição ou anistia ao caso tendo em vista que as duas mortes aconteceram em um contexto de "ataque generalizado do Estado brasileiro contra a população civil". Por essa razão, salienta o órgão, ambos os assassinatos são considerados crimes contra a humanidade.

Em nota, a Procuradoria informou que a coordenação centralizada do sistema semiclandestino de repressão da época foi comprovada por uma série de testemunhos e documentos -entre os quais, um relatório de abril de 1974 assinado pelo então diretor da CIA, William Colby, revelado há pouco mais de uma semana.

Dirigido à Secretaria de Estado dos Estados Unidos, o ofício descreve uma reunião na qual o presidente Ernesto Geisel autorizava ao SNI (Serviço Nacional de Informações) prosseguir com os assassinatos de militantes políticos, opositores ao regime, desde que o Palácio do Planalto fosse previamente consultado.

"Portanto, as execuções não eram atos isolados, mas sim uma verdadeira política de Estado, chancelada pela Presidência, que não apenas estava ciente, mas a coordenava e, a partir de 1974, passava a exigir autorização prévia", afirmou o autor da denúncia, o procurador da República Andrey Borges de Mendonça.

nov.1970 - Imagem divulgada em novembro de 2011 mostra a então guerrilheira Dilma Rousseff com 22 anos durante depoimento na sede da Auditoria Militar do Rio de Janeiro. Dilma era acusada de subversão contra o regime militar e foi presa em São Paulo. Imagem faz parte do livro "A vida quer é coragem", de Ricardo Amaral, que conta a vida da presidente  - AFP - AFP
nov.1970 - Imagem divulgada em novembro de 2011 mostra a então guerrilheira Dilma Rousseff com 22 anos durante depoimento na sede da Auditoria Militar do Rio de Janeiro. Dilma era acusada de subversão contra o regime militar e foi presa em São Paulo. Imagem faz parte do livro "A vida quer é coragem", de Ricardo Amaral, que conta a vida da presidente
Imagem: AFP

Entenda o caso

De acordo com as investigações, a busca aos dois militantes pelas forças de repressão já durava meses por conta de suas atividades de resistência à ditadura. A localização acabou delatada ao regime por outro militante que também morava no local e havia sido capturado e torturado horas antes. Eles estavam escondidos em um alçapão. Na sequência, foram atingidos por tiros de metralhadora. Antônio morreu na hora com disparos na cabeça. Alceri foi baleada nas costas e morreu a caminho do hospital.

O MPF aponta que Lima foi o comandante da ação, já que ele chefiava a equipe de buscas do DOI na capital paulista. O local ficou conhecido por ser um dos principais centros de perseguição, tortura e morte do regime militar. Além de Alceri e Antônio, ao menos 18 pessoas foram vítimas dos atos de violência que o então tenente-coronel empregava na época para reprimir os grupos de oposição à ditadura.

Já Silveira, que também integrava a equipe de buscas do DOI, é apontado como o responsável por ter jogado uma granada no alçapão a fim de expulsar os militantes e facilitar as execuções. Ele também atuava nos interrogatórios realizados no destacamento e participava de atividades da repressão em outras unidades, tais como a "Boate Querosene", em Itapevi (Grande São Paulo), local em que presos políticos eram torturados até a morte ou convertidos em informantes.

"As vítimas foram enterradas como indigentes, com o intuito de não serem localizados os seus corpos (...). Evidente que o crime de ocultação de cadáver, do qual os denunciados participaram, visava evitar questionamentos acerca da forma como as vítimas haviam sido mortas - ou seja, executadas, sem qualquer possibilidade de reação", diz trecho da denúncia.

Ainda que não tenha assumido oficialmente as execuções, as Forças Armadas estavam cientes das circunstâncias em que elas ocorreram. Então comandante do DOI, Carlos Alberto Brilhante Ustra, por exemplo, descreveu em relatório, de forma detalhada, como a ação ocorreu e declarou expressamente a morte dos militantes. A versão acabou posteriormente reproduzida em documentos internos dos Ministérios da Aeronáutica e da Marinha.

Além da condenação pelos crimes de ocultação de cadáver e homicídio duplamente qualificado, o MPF pede ainda que os Lima e Silveira tenham suas aposentadorias ou outros proventos cassados, bem como medalhas e condecorações que receberam pela atuação no sistema de repressão.

A reportagem não conseguiu contato com advogados dos acusados.

Entrevista à Folha em 2010

Em entrevista à Folha, em 2010, Lima admitiu ter participado da operação que levou à morte dos dois militantes. Naquele ano, em 2010, ele havia sido acusado pelo MPF de participar de atos de violência contra Dilma Rousseff, e outros 19 presos políticos.

No depoimento, então inédito, o militar confirmou ter comandado a operação, alegou que Antônio teria atirado contra ele e classificou as duas mortes como "inevitáveis".
"Todas as equipes já tinham saído quando lá chegou não sei quem. E disse "Olha, o pessoal tá no aparelho, no Tatuapé... e no meio do corredor tem um alçapão'", relatou ele. "Fui procurar o alçapão, encontrei (...) Peguei um canivete, enfiei, tirei e saiu um cara que me deu seis tiros. Saltei para trás [fazendo barulho de tiros], e ele atirava. Eu acho que esse era o Antonio Três Rios [sic]", disse.

Na entrevista, Lima disse ainda que Alceri chegou a ser retirada do local com vida. "Embaixo tinha uma menina, que também foi atingida e saiu com vida." "O Antônio morreu na ação. A mulher saiu viva e morreu a caminho do hospital. Baleada. Era a Alcira [sic]." Apesar de admitir a presença na ação, ele negou que tivesse atirado —responsabilizou agentes chefiados pelo capitão Francisco Antônio Coutinho e Silva, já falecido.

Publicado pela Presidência da República em 2007, o livro "Direito à Memória e à Verdade" traz depoimentos de ex-presos políticos que garantem ter sido baleados "por agentes da Oban chefiados pelo capitão Maurício Lopes Lima".