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O que é o "pensamento gramsciano" combatido pelos apoiadores de Bolsonaro?

Ricardo Vélez e Jair Bolsonaro em 1º de janeiro, dia da posse presidencial  - Dida Sampaio/Estadão Conteúdo
Ricardo Vélez e Jair Bolsonaro em 1º de janeiro, dia da posse presidencial Imagem: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

Juliana Carpanez

Do UOL, em São Paulo

05/01/2019 04h01

Em seu discurso de posse como ministro da Educação, na quarta-feira (2), Ricardo Vélez Rodríguez apontou a "tresloucada onda globalista, tomando carona no pensamento gramsciano" como responsável por destruir "os valores culturais em que se assentam nossas tradições mais caras: a família, a igreja, a escola, o estado e a pátria".

O deputado Eduardo Bolsonaro tuitou o vídeo da posse com esse trecho e destacou, em texto, a frase sobre o pensamento gramsciano: até sexta (4), o post teve mais de 3.680 retuítes, recebeu mais de 20 mil curtidas e gerou 860 comentários.

O termo "gramsciano" vem ganhando popularidade e sendo repetido pelos apoiadores do novo governo.

Não é um conceito simples: em 2017 a editora Boitempo lançou a versão em português do italiano "Dicionário Gramsciano" com mais de 600 verbetes para ajudar no entendimento de palavras e conceitos presentes nos livros "Cadernos do Cárcere" e "Cartas do Cárcere". Trata-se, como o nome diz, de um dicionário próprio, com 832 páginas, para entender as ideias de um pensador. 

Seu nome é Antonio Gramsci (1891-1937), um dos fundadores do Partido Comunista na Itália (fala-se "grâmixi", com o som do primeiro "i" quase imperceptível). Teórico sobre o pensamento de Karl Marx, foi eleito à Câmara dos Deputados e depois preso, em 1926, quando seu partido foi banido pelo partido fascista de Benito Mussolini. Na prisão, estudou a sociedade italiana e possíveis estratégias para mudanças. Por motivos de saúde, foi libertado e morreu dez dias depois. 

Antonio Gramsci, coleção pensadores de educação - Wikimedia commons - Wikimedia commons
O italiano Antonio Gramsci (1891-1937)
Imagem: Wikimedia commons
Trechos daquilo que escreveu quando preso foram publicados em meados do século 20 e muitas de suas propostas se tornaram parte fundamental do pensamento marxista ocidental. É aí que entra o discurso do ministro Vélez, alinhado com o de Jair Bolsonaro (PSL), que na posse presidencial considerou aquele o dia em "que o povo começou a se libertar do socialismo". 

O que está no centro do debate 

Assim Olavo de Carvalho, guru da direita responsável pela indicação de Vélez ao cargo, resume o gramscismo: "[...] em vez da tomada violenta do poder por uma organização monolítica [Gramsci] pregava a lenta penetração da esquerda na administração estatal e nos órgãos formadores da opinião pública por meio de redes flexíveis de colaboradores informais". 

Segundo post no blog de Carvalho, a definição acima foi escrita em coluna publicada em 2000 no "Jornal da Tarde" --no mesmo site há diversos outros posts e aulas tratando desse assunto. 

"Ameaça aos valores culturais e tradições" 

"Da forma como [o pensamento] é exposto, passa a ideia de ameaça, de perigo. É como se pensassem: 'Se não ficarmos atentos e não combatermos isso [o pensamento gramsciano], vão acabar com a família, com a igreja, vão impor a questão de gênero. Tudo isso aparece no discurso [de Veléz]. Alguma razão há nisso, pois Gramsci é um autor claramente anticapitalista e defensor dos interesses históricos dos trabalhadores", afirma Marcos Del Roio, professor-titular de Ciência Política da Unesp (Universidade Estadual Paulista). 

Estudioso do pensador há mais de duas décadas, Del Roio é também autor de livros sobre Gramsci, integrante da IGS (International Gramsci Society) e IGS/Brasil. Para o professor, a visão que a nova direita apresenta desse pensamento é distorcida e rebaixada. Assim Del Roio o resume: 

  • Gramsci procura estudar como a hegemonia burguesa se forma e se constitui. 
  • Hegemonia, aqui, como sendo a capacidade de a burguesia organizar a produção e difundir sua visão de mundo, de que aquilo (valores de mercado, liberalismo) é o natural, o melhor mundo possível. 
  • Gramsci pensa que esse mundo será superado, pois tudo na história será superado. Então como fazer para chegar a uma "civilização superior" (como estava preso e havia censura, lembra o professor, o autor não usa palavras como "socialismo" ou "comunismo"). 
  • Isso seria possível com o proletariado, a classe operária criando seus intelectuais com outra visão de mundo (não alinhada à da burguesia). "É aqui que os conservadores identificam o perigo", afirma Del Roio.
  • Gramsci não defendia a modificação ou melhoria do Estado atual (seguindo essa teoria da penetração de representantes esquerda), mas sim a criação de um Estado novo baseado nas forças de trabalho. 
  • Ainda sobre essa ideia de doutrinação, Del Roio explica: "O método é dialógico, ou seja, há sempre um ou mais interlocutores para que esclareça o seu próprio pensamento. Esses interlocutores são escolhidos entre os melhores e mais importantes no tema em debate. Tem que falar com quem está lá em cima, porque 'bater' em quem está embaixo não adianta". 
     

Superssimplificação

Professor do departamento de Ciência Política da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor do livro "O Laboratório de Gramsci", Alvaro Bianchi identifica o que chama de "superssimplificação" de pensamentos complexos.

O debate político contemporâneo se tornou muito rudimentar ao entrar nesses novos modelos de propaganda política. Isso faz com que ideias complexas sejam tratadas de maneira ligeira, superficial e tenham seu conteúdo deturpado
Alvaro Bianchi, professor da Unicamp

No pensamento de Antonio Gramsci, continua Bianchi, o conceito de hegemonia diz respeito à direção intelectual, moral e política que um grupo social exerce na sociedade. A hegemonia se contrapõe, desse modo, à dominação, à violência ou à coerção. "Mas nesse debate superssimplificado, a hegemonia passou a significar, muitas vezes, a simples a ocupação de postos na máquina estatal, na imprensa e nas escolas [para que se exerça uma suposta doutrinação]", afirmou. "Se realmente houvesse essa hegemonia que falam, a esquerda não teria perdido as eleições."