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TRF-3 impede abertura de processo por morte de jornalista na ditadura

A viúva de Merlino, Ângela Mendes de Almeida, de branco, beija a irmã, Márcia, ao final do julgamento - Marcelo Oliveira/UOL
A viúva de Merlino, Ângela Mendes de Almeida, de branco, beija a irmã, Márcia, ao final do julgamento Imagem: Marcelo Oliveira/UOL

Marcelo Oliveira

Do UOL, em São Paulo

10/10/2019 14h21

Resumo da notícia

  • TRF-3 decide não aceitar pedido para julgar militares por morte de jornalista
  • Dois desembargadores votam por respeitar a Lei da Anistia
  • Viúva diz que decisão estimula tortura

Em julgamento realizado hoje à tarde, por 2 votos a 1, a 11ª Turma do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), em São Paulo, não aceitou recurso e não recebeu a denúncia do MPF que pedia que três agentes da ditadura fossem processados pelo homicídio do jornalista Luiz Eduardo Merlino, morto no Hospital do Exército, em julho de 1971, após 24 horas de tortura no DOI-Codi.

O relator, desembargador José Lunardelli, e o presidente da turma, Nino Toldo, votaram contra a tese do MPF. Para eles, não há como contornar a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de 2010, que julgou constitucional a Lei de Anistia de 1979 e, por isso, não seria possível receber a denúncia. Cabe recurso da decisão.

Ao votarem contra a denúncia, Lunardelli e Toldo fizeram menções às vítimas da ditadura. O primeiro disse compartilhar da dor das vítimas e o segundo afirmou que os crimes denunciados eram "abjetos", contudo, ambos consideraram a Lei de Anistia incontornável. "Há questões jurídicas que nos vinculam a decisões de tribunais superiores e é isso o que neste caso ocorre", afirmou Toldo ao encaminhar seu voto.

O desembargador Fausto de Sanctis divergiu e votou pelo recebimento da denúncia do MPF. Para ele, a Lei de Anistia não representou a vontade popular e, ainda que legítima, não serviria para impedir que fossem processados autores de homicídios e estupros e outras graves violações de direitos humanos.

Não cabe Anistia

"Os crimes atingidos pela Anistia deveriam ser aqueles qualificados como políticos, ou conexos com estes, assim entendidos os delitos de qualquer natureza praticados por motivação política. Desta feita, a disposição legal em tela não teve o condão de abranger graves violações de direitos humanos praticadas por agentes estatais", afirmou De Sanctis em seu voto.

Tanto o desembargador, em seu voto, como o MPF e a assistente de acusação, em suas sustentações orais, defenderam que os casos de crime contra a humanidade não podem ser analisados somente no âmbito da legislação nacional e que é necessário enfrentar a questão da convencionalidade, ou seja, verificar se as leis brasileiras estão de acordo com tratados internacionais.

Como o Brasil é signatário de tratados internacionais de direitos humanos e aceitou a jurisdição de tribunais internacionais, deve receber decisões como as que condenaram o Brasil nos casos Gomes Lund e Herzog. Em ambas as decisões, a Lei de Anistia brasileira foi considerada em desacordo com o sistema americano de direitos humanos.

A viúva de Merlino, Ângela, concede entrevista - Marcelo Oliveira/UOL - Marcelo Oliveira/UOL
A viúva de Merlino, Ângela, concede entrevista
Imagem: Marcelo Oliveira/UOL

"O Supremo nunca analisou esse caso sobre o aspecto da convencionalidade e o Brasil já foi condenado na Corte Interamericana. O recurso deve ser recebido e assim, finalmente, que seja feita Justiça", afirmou o procurador regional da República João Francisco Bezerra de Carvalho, ao defender o recebimento da denúncia.

"Crimes contra a humanidade são imprescritíveis e inanistiáveis desde os anos 40 do século passado", afirmou a assistente de acusação, advogada Eloísa Machado, representante dos Merlino, que lembrou que os familiares da vítima há 48 anos buscam por justiça. A advogada citou ainda a decisão de agosto do TRF-2 (Rio de Janeiro), que aceitou denúncia do MPF pelos crimes de sequestro e estupro de Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da Casa da Morte.

Estímulo à tortura

A viúva de Merlino, Ângela Mendes de Almeida, disse que a decisão estimula a tortura e que a família deverá recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos. "Nenhum país acha a tortura tão normal quanto aqui", afirmou.

De pé, a advogada de família Merlino, Eloísa Machado, defende o recebimento da denúncia. - Marcelo Oliveira/UOL - Marcelo Oliveira/UOL
De pé, a advogada de família Merlino, Eloísa Machado, defende o recebimento da denúncia
Imagem: Marcelo Oliveira/UOL

Merlino era natural de Santos e trabalhou no Jornal da Tarde e na Folha da Tarde. A partir de 1969, passou a militar no Partido Operário Comunista e integrou ações clandestinas de oposição. No final de 1970, por exemplo, foi à França participar de eventos ligados à 4ª Internacional Comunista.

24 horas de pau de arara

De volta ao Brasil, ainda com um passaporte legal, Merlino foi preso em Santos na casa de sua mãe em 15 de julho de 1971 e levado ao DOI-Codi, em São Paulo, comandado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, onde foi submetido a uma sessão de 24 horas de tortura no pau de arara (instrumento de tortura em que a vítima é presa, de cabeça para baixo, em uma barra de ferro, amarrado pelas mãos e pelos joelhos).

Segundo a denúncia do MPF, participaram da sessão os então policiais civis Aparecido Laertes Calandra (dr. Ubirajara) e Dirceu Gravina (JC ou Jesus), então policiais civis cedidos ao DOI-Codi.

Ustra, Calandra e Gravina foram denunciados por homicídio pelo MPF. Ustra morreu outubro de 2015 e deixou de ser parte no processo.

Segundo a denúncia, os agentes queriam que ele entregasse sua companheira, Angela. Após a tortura, Merlino não conseguiu mais se levantar e foi levado dias depois ao Hospital do Exército em São Paulo, onde diagnosticaram que ele só sobreviveria caso fosse amputada uma de suas pernas. Ustra, segundo a denúncia, foi consultado, mas ordenou ao hospital que deixasse Merlino morrer.

Depois da morte do jornalista, a cela foi lavada e foi criada uma versão de que Merlino havia sido atropelado por um caminhão na BR-116, ao fugir durante uma escolta até Porto Alegre. Para tentar dar verossimilhança à versão, Ustra mandou que um caminhão passasse sobre o corpo de Merlino e deixasse marcas de pneu no cadáver.

O legista Abeylard de Queiroz Orsini, segundo a denúncia, endossou a versão de Ustra, assinada também pelo legista Isaac Abramovitch, que morreu antes do oferecimento da denúncia pelo MPF. Na década de 90, peritos revelaram inconsistências nos laudos. Orsini foi denunciado por falsidade ideológica.