STF limita MP de Bolsonaro e considera 'erro grosseiro' ignorar a ciência
Felipe Amorim
Do UOL, em Brasília
21/05/2020 17h07Atualizada em 21/05/2020 19h34
Em sessão de julgamento na tarde de hoje, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu limitar os efeitos da MP (medida provisória) do governo Jair Bolsonaro (sem partido) editada com o objetivo de isentar agentes públicos de responsabilização civil e administrativa por atos de resposta à pandemia do novo coronavírus.
A maioria dos ministros determinou que as medidas de enfrentamento à pandemia devem seguir critérios científicos reconhecidos por autoridades médicas e sanitárias e que a atuação contrária à ciência pode configurar "erro grosseiro" passível de responsabilização do agente público.
Votaram dessa forma os ministros Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. O ministro Marco Aurélio Mello votou pela suspensão integral do texto da MP. O ministro Celso de Mello não participou do julgamento.
O julgamento analisou sete ações contra a MP 966, publicada em 13 de maio, que restringe a possibilidade de responsabilização dos agentes públicos durante a pandemia da covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus.
A MP prevê que os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa por seus atos, ou omissão, praticados com dolo (intenção) ou "erro grosseiro". A restrição à responsabilização, de acordo com a MP, se aplica aos atos relacionados com as medidas de enfrentamento à pandemia, tanto no campo da saúde quanto nos campos econômico e social.
Os ministros Alexandre de Moraes e Cármen Lúcia defenderam a exclusão da MP das medidas de combate aos efeitos econômicos e sociais, mas ficaram em minoria nesse ponto.
A decisão do STF manteve a validade da medida provisória, mas delimitou sua interpretação para, na prática, restringir o que pode ser configurado como erro grosseiro.
Em seu voto, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que medidas que contrariem critérios técnicos e científicos de instituições médicas e sanitárias, além de não seguir os princípios constitucionais da precaução e da prevenção, e violem os direitos à vida e à saúde, devem ser entendidas como um "erro grosseiro" passível de responsabilização nos termos da MP.
"Na análise do que signifique erro grosseiro deve se levar em consideração a observância pelas autoridades e pelos agentes públicos daqueles dois parâmetros que nós estabelecemos na jurisprudência do Supremo: os standards, normas e critérios científicos e técnicos tal como estabelecidos por organizações e entidades médicas e sanitárias nacional e internacionalmente reconhecidas, bem como a observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção", afirmou o ministro.
Outro ponto defendido por Barroso em seu voto foi o de que atos de improbidade administrativa não podem ser considerados "erro grosseiro". Segundo o ministro, a punição à improbidade é regulada por uma lei própria com critérios específicos.
A medida provisória analisada pelo Supremo trata apenas de responsabilização civil e administrativa, e não isenta de punição atos criminosos, como corrupção.
Em seu voto, Barroso citou como exemplo de ações que tem causado polêmica o uso da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes e as medidas de isolamento social e de retomada da economia. Foi nesse contexto que o ministro afirmou que medidas que não sigam o consenso científico podem levar à futura responsabilização dos agentes públicos.
O uso da cloroquina também foi citado como exemplo por outros ministros.
O ministro Gilmar Mendes disse que a definição do tratamento dos pacientes com coronavírus deve seguir a ciência e voltou a afirmar que a Constituição não autoriza o presidente da República a adotar uma "política genocida" na saúde.
"Quero ressaltar a importância de decisões tomadas por gestores se guiarem ao máximo em standards técnicos, em especial as normas e critérios científicos aplicados à matéria, entre elas a orientação da Organização Mundial da Saúde", disse Gilmar.
"Não podemos é sair aí a receitar cloroquina e tubaína, não é disso que se cuida. O relator deixou isso de maneira evidente, é preciso que haja responsabilidade técnica", afirmou o ministro.
O ministro Luiz Fux defendeu a aplicação de critérios técnicos nas definições do tratamento e disse que a jurisprudência do STF defende a prudência contra medicamentos experimentais.
"A questão de que nesse momento de pandemia se pretenda utilizar fármacos que ao invés de se curar a doença, venha a matar o doente. E nós estamos experimentando um momento desafiador para a medicina, porque a medicina não conhece essa doença", disse Fux.
"Esse 'todo cuidado é pouco' utilizado na linguagem coloquial se reflete na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em várias causas em que foi analisado o direito à saúde, em que esse 'todo cuidado é pouco' se exterioriza pelos princípios da prevenção e da precaução", afirmou o ministro.
Cloroquina e isolamento
O uso da cloroquina e da hidroxicloroquina é defendido pelo presidente Jair Bolsonaro e foi o principal ponto de divergência com o ex-ministro da Saúde Nelson Teich, que deixou o cargo na semana passada. A discussão sobre o uso da cloroquina também provocou divergências entre Bolsonaro e o antecessor de Teich, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.
Não há estudos conclusivos sobre os benefícios das substâncias no tratamento dos pacientes e são conhecidos efeitos adversos, como arritmia cardíaca que pode levar à morte.
Três sociedades médicas ligadas diretamente às áreas de tratamento da covid-19 informaram ter chegado a um consenso contra o uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com o novo coronavírus.
Apesar disso, ontem o Ministério da Saúde divulgou um protocolo para aplicação da cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes em todos os casos, inclusive os com sintomas leves, para tratar do novo coronavírus. O protocolo, que sugere a combinação dos dois medicamentos com azitromicina, é uma orientação para a rede pública de saúde.
Já as medidas de distanciamento social têm sido motivo de embate entre Bolsonaro, crítico do isolamento, e governadores e prefeitos que restringiram a circulação de pessoas e o funcionamento de setores econômicos na tentativa de frear a propagação do vírus.
Em abril, decisão do STF reconheceu os poderes de estados e municípios para determinar medidas de isolamento.
Governo defendeu a MP
O governo Bolsonaro defende a MP como uma forma de dar segurança jurídica aos gestores públicos que precisam adotar medidas emergenciais durante a pandemia.
"Ao contrário do que se alega, a edição da MP 966 não teve por objetivo 'blindar' os servidores ou livrá-los dos deveres e obrigações próprios da atividade estatal, mas resultou do apelo dos agentes públicos que atuam nas ações emergenciais de combate à pandemia e aos seus efeitos econômicos e sociais, submetidos a elevada pressão para a adoção de medidas rápidas e efetivas, que se demonstraram temerosos de que o futuro controle de seus atos viesse a ser realizado sem levar em conta a realidade subjacente ao enfrentamento da pandemia do novo coronavírus", afirmou a AGU (Advocacia-Geral da União), em manifestação enviada ao Supremo.