Leonardo Sakamoto

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Opinião

Plano lembra que Bolsonaro não criou o golpismo militar, mas o contrário

O plano para envenenar Lula, executar Geraldo Alckmin, explodir Alexandre de Moraes e perpetuar Bolsonaro no poder aumenta as chances do país ver, enfim, um general condenado e preso por crimes cometidos contra o Estado democrático de direito. Não resolve o tanto de lixo varrido para baixo do tapete desde 1964, mas seria, finalmente, uma guinada de comportamento de uma sociedade que se diz civil, mas vive brigando para manter os militares nos quartéis e não interferindo na política.

A operação da Polícia Federal, desta terça (19), prendeu o general da reserva Mario Fernandes, os tenentes-coronéis Hélio Ferreira Lima, Rafael Martins de Oliveira e Rodrigo Bezerra de Azevedo e o policial federal Wladimir Matos Soares, que teriam tramado os assassinatos com o apoio do general Braga Netto, candidato a vice na chapa derrotada em 2022 e que já foi condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral e está inelegível, tal como Jair.

O golpismo militar criou Bolsonaro ou Bolsonaro criou o golpismo militar? O ovo do golpe de 1964 gerou Jair, que se associou a um numeroso contingente das Forças Armadas para governar, manter privilégios e atacar a democracia. As intentonas que vemos hoje são ainda fruto da nossa incompetência como nação de julgar e punir o que, em 2024, completou 60 anos.

Essa não é a primeira operação para apurar a existência de uma organização criminosa, sob a gestão passada, que tentou dar um golpe de Estado que envolveu militares. Em fevereiro deste ano, por exemplo, a Polícia Federal cumpriu 33 mandados de busca e apreensão, quatro mandados de prisão e 48 medidas cautelares, frutos da delação do ex-faz-tudo Mauro Cid.

Entre os alvos estavam o general Augusto Heleno, ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o general Braga Netto, ex-ministro-chefe da Casa Civil e candidato a vice na chapa de Jair à reeleição, o general Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa, o general Estevam Cals Theophilo Gaspar Oliveira, ex-chefe do Comando de Operações Terrestres, o almirante Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha, e o general Mario Fernandes, que foi o número 2 da Secretaria-Geral da Presidência - o mesmo envolvido na tramoia revelada ontem. E, claro, o próprio Jair Messias Bolsonaro, que é capitão da reserva.

Se considerarmos que as joias doadas pelos governos árabes ao Brasil e surrupiadas por Bolsonaro podem ter sido vendidas nos Estados Unidos para ajudar a manter o ex-presidente na Flórida enquanto fugia de possíveis punições pelo golpismo ao final de 2022 e aguardava os desdobramento do 8 de janeiro de 2023, temos mais militares para a lista.

Entre os indiciados, neste caso, por desvio de bem público, lavagem de dinheiro e organização criminosa, nove vestem ou já vestiram farda. São eles, o ex-capitão Jair Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid, o general Mauro Lourena Cid, o almirante Bento Albuquerque, o contra-almirante José Roberto Bueno Júnior, o capitão de corveta Marcelo Vieira, o coronel Marcelo Costa Câmara, o capitão-tenente Marcos André do Santos Soeiro e o primeiro-tenente Osmar Crivelatti. Júlio Cesar Vieira Gomes, ex-chefe da Receita Federal, também entra na lista porque é ex-oficial da Marinha e deixa isso claro em seu currículo.

É tanto militar junto atuando por uma única causa a mando da Presidência da República que podemos dizer, sem receio algum, que essa foi uma das maiores operações militares da gestão anterior. Teve até avião da Força Aérea envolvido.

Golpismo não é pontual nas Forças Armadas

Há militares legalistas que se moveram para impedir o golpe bolsonarista, claro. Mas a quantidade de oficiais envolvidos nas sacanagens contra a democracia derruba a justificativa de que os golpistas são apenas casos pontuais e que os militares se deixaram levar pelo bolsonarismo como se fossem polo passivo.

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Militares formam um dos pilares do bolsonarismo. O ex-presidente não criou a extrema direita golpista. Ela sempre esteve aí. Ele só deu a ela organização e sentido através de sua eleição em 2018, inclusive nas Forças Armadas.

Nos seus quatro anos de governo, Jair fechou uma sociedade com os militares, oferecendo cargos, vantagens na Reforma da Previdência, licitações suspeitas de produtos para levantar o moral do oficialato. Eles se beneficiaram de Viagra e próteses penianas, mas também de camarão e filé mignon e continuaram ganhando pensões especiais para filhas não casadas e acesso a hospitais especiais. Coronéis articularam bizarras reuniões em que se negociou com reverendos, servidores públicos e indicados de políticos, sobrepreço e propinas para a compra de doses de vacina contra a covid-19 enquanto pessoas morriam por falta de imunizante.

Bolsonaro atacou as urnas eletrônicas com a ajuda dos militares ao longo de anos. E, em, novembro de 2022, os comandantes das três forças soltaram uma nota com uma falácia absurda, apontando que o fato de não terem encontrado problemas nas urnas não significava que eles não existiam.

Após o segundo turno, os comandantes das Forças Armadas deram uma passada de pano monumental nos movimentos golpistas que acampavam em torno de quartéis e trancavam rodovias. Defenderam, em nota pública, que os atos eram legítimos, ignorando que eles não estavam pedindo mais arroz e feijão, educação ou saúde, mas um golpe de Estado com participação e prisão do presidente eleito. Esses "atos legítimos" desaguaram na tentativa de golpe.

Dezenas de acampamentos montados à frente de instalações militares em cidades de todo o Brasil após as urnas darem a vitória a Lula serviram para abastecer a mobilização golpista de 8 de janeiro. E o acampamento golpista em frente ao QG do Exército também serviu de cabeça-de-ponte para o ataque à sede da Polícia Federal e a queima de carros e ônibus no dia 12 de dezembro e o planejamento da bomba colocada em um caminhão de combustível a fim de explodir o aeroporto de Brasília na véspera de Natal, além do próprio 8 de janeiro.

Em uma reunião com Bolsonaro, quando as Forças Armadas foram chamadas a aderir o golpe, no final de 2022, o almirante Garnier teria colocado a Marinha à disposição, segundo depoimentos do general Freire Gomes e do brigadeiro Baptista Júnior.

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Momento é propício para discutir mudanças em leis

Como já disse aqui, nunca curamos as feridas deixadas por 21 anos de ditadura. Tapamos com um curativo mal feito, ao qual chamamos de transição lenta, gradual e segura. Mas essas feridas continuam fedendo, apesar dos esforços estéticos. Não apenas pelo apoio e a anuência de membros das Forças Armadas à tentativa de golpe, mas toda vez que o Estado mata - não como um infeliz efeito colateral da proteção da população ou de si mesmo, mas como execução de uma política de limpeza e contenção social.

Forças Armadas são importantes para qualquer país, desde que saibam quem devem proteger. A sua potência está na capacidade de respeitar a Constituição Federal, não de obter benefícios em troca de ser usada para atender às necessidades de um governo de plantão. Se militares não foram presos pelo golpismo de 1964, que o sejam pelo de 2022/2023.

Este é o momento de promover mudanças legislativas para garantir que militares fardados fiquem na caserna, deixando a política para civis, como tramita no Congresso Nacional. Mas não só: o ideal seria revisar a legislação para impedir a distorção da Constituição por extremistas que acreditam no tal poder moderador, acabar com privilégios das Forças Armadas e mandar para a cadeia generais estrelados que participaram da tentativa de golpe.

Se este Congresso não fizer isso, passará para a História como covarde, conivente e omisso. Se aprovar uma anistia, então, fica para a posteridade como cúmplice.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL